Vale a pena! (2): Bendito quem confia no Senhor

A Sagrada Escritura não nos dá uma resposta teórica sobre a fidelidade, mas indica quem é fiel.

“Hi-fi”: esse é um dos recursos fundamentais que esperamos de um equipamento para ouvir música. A high fidelity, alta fidelidade é uma garantia de que o som que reproduz se aproxima muito do original. O objetivo, tanto do equipamento como de quem ouve é procurar ter contato com o som inicial, com a primeira gravação, sem alterá-la. Trata-se da fidelidade compreendida como exatidão, como a capacidade de manter algo intacto.

No entanto, na cultura do antigo Oriente Médio, onde se realizou a revelação de Deus ao povo de Israel, o modo de compreender a fidelidade é um pouco diferente do indicado nesta acepção. A fidelidade não é associada à precisão, mas solidez, estabilidade, permanência ao longo do tempo; confiabilidade, lealdade e veracidade. Na linguagem bíblica a fidelidade também está fortemente vinculada à misericórdia paternal de Deus, âmbito no qual não tem sentido falar de exatidão.

Não como os outros deuses

Se procuramos na Sagrada Escritura uma definição completa de fidelidade, não encontraremos. Se recorremos, pelo contrário, aos livros sagrados perguntando-nos quem é fiel, tanto o Antigo como o Novo Testamento dizem de maneira rotunda: Deus é fiel[1]. Mas, o que quer dizer que Deus é fiel? Por que a Bíblia destaca tanto a fidelidade do Senhor?

Por um lado, o Deus de Israel é fiel em contraste com os deuses dos povos vizinhos. “Deus é o fundamento da esperança – não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano e que nos amou até o fim”[2]. Os mitos pagãos mostram deuses que se comportam de modo volúvel e caprichoso; são às vezes, bons, às vezes, maus. Nunca se sabe como vão reagir, portanto, não é razoável confiar neles. No Egito e na Mesopotâmia, por exemplo, era frequente representar os deuses em forma de touro, leão, águia, dragão ou outros animais. O culto a essas divindades estava impregnado de atitudes semelhantes às que teríamos diante de um animal ameaçador: satisfazer sua fome, apaziguar sua raiva ou simplesmente não interromper seu descanso.

Não é o que acontece em Israel. A lei mosaica proíbe representar o Senhor com figuras de qualquer tipo[3]. O Deus de Israel aceita sacrifícios e oferendas, mas não por padecer necessidades ou porque o seu ânimo depende disso[4]. Que o Senhor seja fiel, em contraste com os falsos deuses, significa que não é caprichoso nem inconstante, que, de alguma forma, podemos intuir como vai atuar. Esta fidelidade não implica que o Senhor siga um modelo uniforme de conduta ou que seu modo de intervir na história seja repetitivo. Deus é livre, transcendente e soberano, “é todo o movimento e toda a beleza e toda a grandeza”[5], de modo que a sua fidelidade à aliança não exclui a novidade (cf. Is 43, 16-19). O Senhor nos adverte, através do profeta Isaías, que Ele pode nos surpreender ou desconcertar: “Meus pensamentos não são os vossos, nem vossos caminhos, meus caminhos – oráculo do Senhor – Tão elevados como os céus sobre a terra, assim são meus caminhos sobre os vossos caminhos e os meus pensamentos sobre os vossos pensamentos” (Is 55, 8-9). Deus sempre salva seu povo, mas nem sempre do modo que o povo espera. “Ele sempre pode, com sua novidade, renovar nossa vida e nossa comunidade e, embora a proposta cristã nunca envelheça, atravessa épocas obscuras e debilidades eclesiais”[6].

Além daquela diferença, um desvio frequente da relação dos homens com Deus é querer controlá-lo ou usá-lo a nosso bel-prazer. A adivinhação e outras práticas semelhantes eram, por isso, severamente proibidas em Israel (cf. Lv 19, 26-31). Que Deus seja fiel à sua palavra não quer dizer que o seu modo de se comportar seja sempre o mesmo e, portanto, previsível e controlável por parte dos homens. Podemos estar certos de que nunca deixará de amar-nos, embora muitas vezes não saibamos como este amor vai se manifestar. A sua lógica sempre excede a nossa. Pode dar-nos, às vezes, mais do que havia prometido, ou pode cumprir uma profecia de uma forma inusitada. A “fidelidade não tem nada de estéril nem de estático; é criativa”[7].

Um Deus “rico em misericórdia e fidelidade”

A Bíblia afirma que o Senhor é fiel em comparação com os falsos deuses dos povos vizinhos; ainda que, na realidade, o texto sagrado o afirme sobretudo em relação aos seres humanos: “A glória de Israel não mente nem se arrepende, porque não é um homem para arrepender-se” (1 Sm 15, 29). Ao contrário da nossa experiência humana, o Senhor diz sempre a verdade, não volta atrás em suas promessas: “Deus não é como um homem capaz de mentir, nem um filho de Adão para voltar atrás. Ele diz e não o faz? Fala e não cumpre?” (Num 23, 19). Só Deus é absolutamente sólido e confiável, só com Ele podemos construir com a certeza de que não seremos enganados. Por isso, Bento XVI diz: “Enquanto tudo passa e muda, a Palavra do Senhor não passa. Se as vicissitudes da vida fazem que nos sintamos perdidos e parece que toda certeza cai por terra, contamos com uma bússola para orientar-nos, temos uma âncora para não andar à deriva”[8].

O livro do Êxodo conta que, depois do pecado do bezerro de ouro, Deus renovou a aliança com seu povo no monte Sinai. Antes de entregar a Moisés pela segunda vez as tábuas da lei, Deus passou na frente dele dizendo: “Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera e rico em misericórdia e fidelidade” (Ex. 34, 6). Costuma-se considerar essas palavras como uma segunda revelação do nome de Deus, depois da que havia acontecido antes, também com Moisés. Encontramos esta descrição de Deus repetida, com pequenas variações, em outras sete passagens, de diversos livros do Antigo Testamento[9]. Por isso, São Josemaria diz: “Se percorrermos as Santas Escrituras, descobriremos constantemente a presença da misericórdia de Deus (...). Que segurança nos deve incutir a comiseração do Senhor”[10].

Israel sabe, no entanto, que o seu Senhor é compassivo e fiel não simplesmente por tê-lo dito a Moisés no Sinai, mas sobretudo porque o povo o comprovou em sua própria história, em sua própria pele. Deus manifestou a sua fidelidade não simplesmente declarando-a, mas mostrando-a em suas obras. “Senhor, Tu és meu Deus, quero exaltar-te, louvar teu Nome, porque fizeste maravilhas. Teus desígnios são desde sempre fidelidade”[11] – diz o profeta Isaias. Israel é testemunha, repetidas vezes, de que a misericórdia de Deus não desaparece frente às infidelidades humanas. “O Senhor é bom: sua misericórdia é eterna, e sua fidelidade se estende de geração em geração” (Sl, 100, 5) canta o salmista. “Cantarei eternamente as bondades do Senhor; minha boca publicará sua fidelidade de geração em geração” (Sl 89, 2).

No Magnificat, Santa Maria expressa esse modo de ser de Deus, tão claro para quem lê a história sagrada. A mãe de Jesus louva a Deus por ter olhado para sua humildade, por ter feito coisas grandes nela, “recordando sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, Abraão e sua descendência para sempre” (Lc. 1, 54-55). São João Paulo II dizia que “no Magnificat, canto verdadeiramente teológico por revelar a experiência do rosto de Deus vivida por Maria, Deus é não só Poderoso, para quem nada é impossível, como Gabriel tinha declarado (Cf. Lc. 1, 37), mas também o Misericordioso, capaz de ternura e fidelidade para com todo ser humano”[12].

Jesus é o cumprimento das promessas

A fidelidade é um atributo que define a Deus em sua relação com os homens, especialmente com seu povo em virtude da aliança. E, para descrever a força desta aliança, os profetas recorrem a algumas imagens. Uma delas é a do matrimônio, que encontramos desenvolvida sobretudo nos livros de Oséias, Jeremias e Ezequiel. Tal imagem ressalta a misericórdia do Senhor, que está disposto a perdoar e restabelecer a aliança apesar das repetidas infidelidades de Israel. Outra imagem é a da paternidade e maternidade. O livro de Isaías utiliza-a várias vezes, de modo comovedor, para sublinhar como Deus não abandonará nunca o seu povo: “Sião tinha dito: ‘O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-me’. Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta: Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca. Eis que estás gravada na palma de minhas mãos” (Is 49, 14-16).

Jesus retoma toda essa herança de fidelidade e de misericórdia, plasmada no Antigo Testamento, para revelar a continuidade dessa ação divina em sua pessoa. Por exemplo, ele repete o oráculo em que Isaías nos recordava que Deus nunca nos esquece: “Jerusalém, Jerusalém!, que matas os profetas e lapidas os que te são enviados. Quantas vezes quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos sob as asas, e tu não quiseste” (Mt 23, 37). Jesus Cristo sente dor pela rebeldia dos homens, pela sua dureza de coração, frente à insistência, a fidelidade, do amor de Deus.

Inspirando-se também numa passagem do profeta Isaías em que apresenta Israel como a vinha do Senhor (cf. Is. 5, 7), Jesus resume a história da fidelidade de Deus diante da infidelidade humana com a parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mc. 12, 1-12). A parábola conta que o dono da vinha, depois de sucessivas tentativas, por meio de vários servos, de receber os frutos que lhe pertenciam, decide enviar seu filho como último recurso. Os vinhateiros, porém, matam-no. Da mesma forma, a vinda de Jesus, o Filho único de Deus e a sua morte na cruz levam “até o fim” a fidelidade e misericórdia do Deus de Israel (cfr. Jo 13,1). Depois de enviá-lo para que morresse por nós e de elevar sua humanidade ressuscitada acima de toda a criação, Deus já não pode fazer nada maior (cf. Hb 1, 1-2).

Em sua pregação do Evangelho, os apóstolos mostram uma consciência de que o mistério pascal de Cristo – sua paixão, morte e ressurreição – é precisamente o cumprimento da fidelidade de Deus a suas antigas promessas. Jesus é “o Amém, a testemunha fiel e veraz” (Ap. 3, 14), diz o livro do Apocalipse. Na segunda carta de São Paulo aos Coríntios, está a declaração mais explícita a este respeito: “Pela fidelidade de Deus, é que a palavra que lhes dirigimos não é sim e não. Porque Jesus Cristo, o Filho de Deus – que lhes pregamos Silvano, Timóteo e eu – não foi sim e não, mas nele se fez realidade o sim. Porque todas as promessas de Deus são sim em Jesus” (2 Cor 1, 18-20). Esta convicção passou à fé da Igreja, que proclamou constantemente Jesus como o fiel cumprimento de tudo o que Deus havia prometido (Cf. 1 Cor 15, 3-4).

Se não somos fiéis, ele permanece fiel

Em uma passagem da Carta aos Romanos, São Paulo fala daqueles que não acreditaram em Cristo durante a sua passagem pela terra e destaca a grandeza do Senhor: “Se alguns deles não foram fiéis, acaso a sua infidelidade destruirá a fidelidade de Deus? De modo algum!” (Rm 3, 3-4). Podemos pôr plenamente nossa confiança em Deus. “Uns põem sua força nos carros, outros nos cavalos; nós invocamos o Nome do Senhor, nosso Deus” (Sl 20, 8), diz o salmista. “Pois, quem é Deus, senão o Senhor? Quem é o rochedo, senão o nosso Deus?” (2 Sm 22, 32), diz o Rei Davi. Só de Deus se pode afirmar que é o rochedo onde apoiar-se sem medo e procurar proteção. A aplicação a Deus do termo “Rochedo” é tão frequente no Antigo Testamento[13], que se diz às vezes simplesmente “o Rochedo” e se entende que é dele que se está falando.

Ao insistir na fidelidade de Deus, muitas vezes em contraste com a inconstância dos homens, pode parecer que a Sagrada Escritura não deixa muito espaço para a fidelidade humana. Porém, mais do que uma visão pessimista das nossa forças, trata-se de uma afirmação realista e profunda da nossa pequenez frente a seu poder. Compreende-se melhor assim o duro oráculo transmitido por Jeremias: “Maldito o homem que confia em outro homem, que da carne faz seu apoio e cujo coração vive distante do Senhor! Assemelha-se ao cardo da charneca e nem percebe a chegada do bom tempo, habitando o solo calcinado do deserto, terra salobra em que ninguém reside. Bendito o homem que deposita a confiança no Senhor, e cuja esperança é o Senhor. Assemelha-se à arvore plantada perto da água, que estende as raízes para o arroio; se vier o calor ela não temerá, e sua folhagem continuará verdejante; não a inquieta a seca de um ano, pois ela continua a produzir frutos” (Jr 17, 5-8).

A lição dessa passagem, assim como de outras, é que o ser humano não pode ser fiel no mesmo sentido em que Deus é. A resposta humana à fidelidade do Senhor não é uma conduta sem mancha, sem fissuras, mas a fé (cf. Gn 15, 6; Hb 11, 1). De fato, em hebraico emprega-se o mesmo verbo para dizer que Deus é fiel e que um homem crê nele. O Novo Testamento chama “fiéis” àqueles que creem em Jesus Cristo e o seguem (cf. At 10, 45). O que o Senhor quer de nós não é que sejamos firmes e sólidos como Ele, o que seria impossível, mas que depositemos nele toda nossa confiança, como Maria e como os santos “porque é fiel aquele cuja promessa aguardamos” (Hb 10, 23). E o Senhor quer, sobretudo, que reconheçamos nossas ofensas e lhe peçamos perdão. “Se dizemos que não temos pecado, nos enganamos a nós mesmos e a verdade não está em nós – diz a primeira carta de São João – se reconhecemos nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e para nos purificar de toda iniquidade” (1 Jo 1, 8-9). Embora sejamos pecadores, o Senhor não nos deixa nunca sozinhos. “Se não somos fiéis, Ele continua fiel, e não pode desdizer-se” (2 Tm 2, 13).

“Nossa fidelidade não é senão uma resposta à fidelidade de Deus. Deus que é fiel à sua palavra, que é fiel à sua promessa”[14]. Por isso “A fé na fidelidade divina fortalece a nossa esperança, apesar da nossa debilidade pessoal levar-nos às vezes a não ser totalmente fiéis, em coisas pequenas e talvez, em algum momento, em grandes. A fidelidade consiste, então, em percorrer – com a graça de Deus – o caminho do filho pródigo”[15]. O importante é voltar sempre àquele que sempre cumpre a promessa, regressar com fé ao Rochedo que sempre nos espera.

Juan Carlos Ossandón

[1] cf. Dt. 32, 4; 1 Cor 1, 9; 1 Ts 5, 24 e outros.

[2] Bento XVI, Spe salvi, n. 31

[3] cf. Ex 20, 4; Lv 19, 4.

[4] cf. Sl 50, 7-15; Dn 14,1-27.

[5] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 190.

[6] Francisco, Evangelii Gaudium, n. 11

[7] Bento XVI, Homilia, 12/09/2009.

[8] Bento XVI, Ângelus, 12/12/2010.

[9] Cf. Nm 14, 17-18; Dt. 7, 9-10; Sl 86, 15; 145, 8; Jl. 2, 13; Jn 4, 2 e Na 1, 3.

[10] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 7.

[11] Is 25, 1.

[12] São João Paulo II, Audiência, 6/11/1996.

[13] Cf., por exemplo, Dt 32, 4; 1 Sm 2, 2; 2 Sm 22,2; Sl 19, 15; 28, 1; 71, 3; Is 17, 10; Hab 1, 12; e outros.

[14] Francisco, Homilia, 15/04/2020.

[15] Mons. Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 19/03/2022.

Juan Carlos Ossandón