Pilar Urbano: “Escrivá foi um homem com mentalidade de pessoa feliz”

Entrevista à jornalista e escritora Pilar Urbano, autora da biografia “O Homem de Villa Tevere”.

O homem de Villa Tevere (Editora Quadrante)


Em 1994 a jornalista e escritora Pilar Urbano lançou o retrato mais realista de São Josemaria Escrivá. Pintado com as palavras de dezenas de testemunhas próximas, O homem de Villa Tevere conseguiu enfocar o perfil, a história, a vida, a obra, o alcance, os efeitos, os contrastes e a graça que contam, em uníssono, a passagem pela terra do fundador do Opus Dei.

Quase trinta anos depois, Ediciones Palabra, detentora dos direitos do livro, cedeu-os ao site do Opus Dei, para converter essas páginas míticas em um audiolivro (em espanhol). A força de cada adjetivo e o ímpeto de cada ação relatada pelo texto de Urbano se convertem, agora, num lembrete sonoro. No mundo do Spotify, a biografia caleidoscópica de São Josemaria se converte em megas para escutar como um romance de suspense, porque a santidade pode ser um maravilhoso documentário se contada com as luzes e sombras da vida real.

Para jovens e não tão jovens. Para elas e para eles. Para os daqui e para os do outro lado do mundo. Para os do Opus Dei e para quem nunca conseguiu ter uma imagem mental própria entre o excesso de luzes ou o excesso de sombras.

Qualquer um que tenha lido O homem de Villa Tevere reconhece perfeitamente como começa o livro. A câmera desliza entre as linhas de um estúdio improvisado. Um pintor. Muito antes do Instagram lá posa um homem, que nasceu em 1902, faleceu em 1975, foi canonizado em 2002 e continua brilhando sorridente dos altares da Igreja católica irradiando com a luz de sua vida muitas boas ações que colocam Deus no epicentro de cada passo.

Escritório de uma jornalista experiente diante do parque de El Retiro. Madri. Primavera. Ela acaba de lançar um livro novo. Seus olhos brilham com entusiasmo profissional. Usando este audiolivro como cabide, fazemos um traje realista para São Josemaria, pensando nas audiências de todas as gerações, mas, principalmente, em quem são jovens, mais além do documento de identidade. Jovens o suficiente para entender que na vida há tons de cinza e que o cinza do ponto médio pode ser o mais oposto à mediocridade.

Liga-se o gravador e começam as perguntas. Ativam-se os gestos de uma veterana do ofício com tinta nas veias. O áudio vibra. Diria que até na linguagem corporal de Urbano há uma especializada digestão do homem de carne e osso de Villa Tevere. O Padre. O santo. “Escrivá conecta. Escrivá repercute. Escrivá remove. Escrivá emana um seguimento... É um homem com gancho, com punch, com pegada, com ímpeto, com arraste...”. E Pilar Urbano também.

Josemaria Escrivá de Balaguer

O homem de Villa Tevere é um retrato de São Josemaria pintado por Pilar Urbano à maneira de Caravaggio. A verdade transparente de um homem contada com suas luzes e suas sombras. Com o claro-escuro do contraste e o ponto médio do paradoxo, que tem muito a ver com a virtude.

Josemaria Escrivá não foi um homem plano. Tinha suas virtudes e seus defeitos. Seu lado bom e seu lado mau. Como ele dizia de si mesmo, era um pecador que amava muito Jesus Cristo. Este é, talvez, o primeiro contraste que, em realidade, é um paradoxo que não se contradiz, porque todos somos pecadores, mas nem todos amamos muito Jesus Cristo. Ele sim.

O fundador do Opus Dei teve uma consciência muito aguda de que era feito de material frágil, de barro de moringa, ele dizia. Isso me alegra muito porque cada vez entendo melhor que no céu vou me encontrar é com muitos congêneres: muitas moringas e muitos moringos.

Em O homem de Villa Tevere procuro retratar São Josemaria da maneira mais honesta possível. Falo do seu barro e da sua graça, da sua carne e da sua alma, dos seus pés na terra e do seu coração no céu. Falo de um homem, não de um homem espiritualizado. Falo de um homem com o seu caráter que tinha que lutar contra si mesmo. Como todos. Retrato um homem ativo, dinâmico, ágil e executivo que fazia, fazia e fazia. E, ao mesmo tempo que fazia, rezava, rezava, rezava, e amava, amava, amava.

Sua vida foi um caleidoscópio com vidrinhos claros e escuros. Por exemplo: vivia a virtude da pobreza, não como um status social, mas como uma manifestação prática do seu livre desprendimento. Não queria ter, porque desejava ser essencialmente pobre. Presenteavam-no com muitas coisas e ele nem abria os pacotes.

Essa atitude livre se transluz também em suas viagens de catequese. Vimo-lo falando de Deus em tertúlias com milhares de pessoas sobre os palcos de grandes teatros do mundo. Contrastamos a grandeza do seu impulso e o alcance da sua liberdade. E também o ouvimos dizer dele mesmo que era a pessoa que mais obedecia no Opus Dei. Que estava amarrado a um microfone. Que se colocava livremente à disposição de dois de seus filhos, sacerdotes – os chamados custódios, mas não vigilantes – que o mantinham na linha: Padre, agora aqui. Padre, agora lá... Esse remédio, agora deve fazer isso, e depois aquilo... Queria ser muito livre e muito fiel. Era o fundador, mas ele mesmo defendeu que o cuidassem bem de perto, porque sabia que precisava da ajuda de todos.

Josemaria Escrivá de Balaguer com Paulo VI no Centro ELIS (Roma)

Numa sociedade polarizada, o tema dos contrastes pode ser mal-entendido. Poderia refletir a realidade de uma pessoa alavancada pelos extremos. Podemos enquadrar estes paradoxos no âmbito dos pontos médios da virtude?

Sim. Ele não era um homem bipolar, nem contraditório. Não era uma pessoa na segunda-feira e outra na terça. Não! Esses contrastes de que falamos são o claro-escuro que faz com que a luz seja luz, que o branco seja branco e que haja mais relevo.

Exemplo: a construção de Villa Tevere, a casa central do Opus Dei em Roma, foi uma operação de onze longos anos e muitos milhões incluídos, recolhidos entre ajudas, empréstimos e preocupações, apreensões e mais de um problema de saúde para pagar pontualmente os operários. Ao mesmo tempo, uma testemunha que não é da Obra, e que participou em seu processo de canonização, destacou que se surpreendeu ao ver como costumava viajar com uma batina, uma muda de roupa e um tinteiro limpo, onde havia água benta. Só isso.

O mesmo homem que escrevia na beirada dos papeis usados e ultra reciclados para economizar, queria que seus filhos no Opus Dei estivessem sempre bem alimentados, apesar das necessidades. O mesmo que não tinha nada, comprava em lojas de antiguidades o melhor para o culto e lembrava disso especialmente depois do Concílio Vaticano II – mal interpretado por culpa de jornalistas que foram péssimos transmissores -, quando alguns celebravam a missa no balcão de um açougue e consagravam com champanhe. Ele era consciente de que Deus ama o luxo e dizia que quando os apaixonados se presenteassem com pedaços de metal, de ferro, de madeira ou com algumas pedras, nós faríamos isso também com Deus. Enquanto os apaixonados se ofereçam flores, ouro, prata e pedras preciosas, nós o honraríamos assim nessa partezinha da Igreja.

Olhando esses contrastes e com as páginas de O homem de Villa Tevere como pano de fundo, vamos aos paradoxos concretos:

Barro e graça. Corpo e alma

Escrivá foi um homem feito de massa humana, como todos nós. Com defeitos, como todos. Era um homem que lutava contra o seu temperamento, contra a sua disposição ao pensamento e aos julgamentos críticos... Mas era uma pessoa honesta. Que pedia desculpas e agradecia.

Era um homem que lutava. Em mais de uma ocasião ele mesmo comentou que gostava das mulheres e que tinha que lutar para viver a castidade por amor a Jesus Cristo. Queria ser um sacerdote casto livremente e colocava os meios para isso. Eu mesma o ouvi contar em uma ocasião que, às vezes, tinha que vencer-se para não se virar e olhar, quando caminhava pela rua e uma mulher bonita passava a seu lado. Ele reparava muito nos detalhes, mas aprendeu a não olhar calibrando. Conseguia ver se uma pintura estava descascando, se um quadro estava torno ou se havia uma pequena teia de aranha, mas não olhava quando não queria reparar no que não queria reparar.

Sentia-se barro e dava um grande protagonismo ao poder da graça santificante em sua vida. Ele colocava a sua parte – lutava, domava o cavalo, esforçava-se por ser ordenado... – e depois sabia estar imensamente à vontade nas mãos de Deus.

Materialismo cristão e homem sobrenatural

A primeira vez que o ouvi falar do materialismo cristão foi na homilia que pronunciou no campus da Universidade de Navarra em outubro de 1967. Eu estava lá e, quando o ouvi, pensei: Que cara mais valente! Falava ao ar livre com muita liberdade em um contexto muito determinado. Entre outras coisas, como nesse momento reinava um clima clerical na Espanha, ele insistia em que um cristão não é um homem que carrega para a igreja as soluções católicas ou eclesiais para os problemas de um banco, de uma farmácia, ou de um campo de irrigação. Naquela homilia cunhou este termo como “materialismo cristão”, que encantou muita gente, principalmente os franceses.

No seu horizonte, a vida cristã tem muito a ver com espiritualizar o material e materializar o espiritual. Um exemplo essencial: ele via em um homem e em uma mulher um filho ou uma filha de Deus. Dito isto, não faria falta dizer mais. Via um filho de Deus, quer ele fosse rico, pobre, branco, negro, amarelo ou pardo. Amigo ou inimigo. E quem vê isso, também vê de forma mais sobrenatural uma mesa bem-posta, um quarto organizado e um trabalho bem-feito. Ele se aproxima de Deus através de um texto místico, e também no rebuliço de onze anos de obras em sua casa.

Com frequência, Escrivá falava de “distrações ao contrário”, de cantar “canções de amor humano à maneira divina”... E falava disso porque vivia isso. Passeava pelas ruas e rezava pelas pessoas que vinham ao seu encontro e pelos estabelecimentos por onde passava, para que fossem negócios limpos. Era capaz de rezar diante de um sacrário, mas também em um carro, em um trem ou em um bonde. De seu coração escapavam frases como: “Senhor, amo tanto Você como as voltas das rodas deste carro”.

Sua proposta de impulsionar esse materialismo cristão tinha a ver com o desejo de construir a cidade de Deus na cidade dos homens. E a cidade dos homens pode ser, às vezes, suja, detestável, escandalosa, corrupta, malcheirosa e até tediosa. Mas é aí onde se deve construir a cidade de Deus. Essa é a vocação do Opus Dei. São Josemaria não se retirava para o deserto, longe do barulho do mundo, para relacionar-se com Deus mais de perto. Sua cela era a rua. As distrações da vida real o ajudavam a se encontrar com Deus. Isso é o que produz o materialismo espiritualizado.

Também espiritualizava as coisas materiais colocando alarmes para si mesmo, que acendiam a sua presença de Deus. Azulejos e inscrições por sua casa: “Senhor, afaste de mim o que me afasta de Você”. “Vale a pena, vale a pena, vale a pena”... Ao fechar uma porta ou apagar uma luz, conectava também com o que era sobrenatural. Assim, passo a passo, coisa por coisa, seu dia a dia se enchia de ações feitas por amor a Deus e por amor aos seres humanos. São Josemaria era simplesmente capaz de girar uma maçaneta enquanto dizia ao Senhor, por dentro: “Amo Você, amo Você, amo Você”. Convertia uma rotina em uma invenção de oração e de louvor a Deus. Vivia e ensinava que até nas menores coisas pode haver um oceano de eternidade e de amor a Deus.

Honra e humor

Josemaria Escrivá era um homem jovial, alegre e divertido. Cantava com uma boa voz de barítono. As pessoas passavam muitos bons momentos a seu lado, porque à sua sombra se estava muito à vontade. Se algum dos seus filhos no Opus Dei estava doente, Escrivá fazia-se de palhaço e o que necessitasse para fazê-lo passar um bom momento. Era um homem com um cultivado senso de humor e uma evidente mentalidade de pessoa feliz.

Não se queixava, e poderia, porque era o alvo de muitas setas disparadas por todos. Já havia recebido muitas apunhaladas pelas costas. Às vezes perguntava em sua oração: “Senhor, de onde me cuspirão hoje?”. A missão que trazia em suas mãos não estava isenta de cruzes. Abrir a trilha do Opus Dei não foi nada fácil. São Josemaria deparou-se com muita incompreensão e ignorância. E isso que a Obra era um carisma cristão elementar e sem complicação: super-real, como os dias da semana. Mas muitos não entendiam nem a segunda, nem a terça, nem a quarta-feira. Estavam obcecados com procurar cinco pés no gato. Falaram que pervertia os jovens, que era maçom.

Uma noite, aquele homem jovial e dinâmico, já não podia mais. Choviam os ataques das pessoas boas – entre muitas aspas -, ou os dos maus-bons, já se entende, e o caminho lhe parecia muito íngreme. Então, de pijama mesmo, se aproximou ao oratório da residência em que vivia, aqui em Madri. Ficou a uns metros do sacrário e falou com Deus, a pleno pulmão e com plena confiança: “Senhor, se Você não necessita da minha honra, para que vou querê-la?”. A partir desse ato de entrega total, seu senso de honra se converte em profundo senso de humor.

Repare que ele usa o verbo “necessitar”. Não diz: “Se você não quer a minha honra...”. Ele se sentia um instrumento, e se Deus não necessitava a sua honra, então todas as calúnias, comentava, não lhe importavam nem um pouco. Como se sublinhasse: Não há quem tire a minha alegria! Que nasce de saber-se completamente filho de Deus. Essa consciência de ser e sentir-se filho de Deus animava-o a pisar firme. Essa filiação divina é um traço essencial que Deus quis imprimir para sempre no Opus Dei. Não é que as pessoas do Opus Dei sejam “metidas”, é que se sentem filhas e filhos do Dono. O ideal é que seja um traço essencial na vida de toda a Igreja e em todo cristão. Assumir que tem um Deus que é um paizão é um apoio fundamental da sua história e da sua santidade. A partir desse momento, transformou-se por dentro. O homem que estava nas piores condições físicas, sociais, de guerra, de perseguição, de tensão... de repente se sabe e se sente filho de Deus. Sendo bom filho, colocava as bases para ser muito bom pai.

Alegria e contradições

Acrescento ao anterior que Josemaria foi um homem que chorou muito, porque sofreu muito, porque amou muito. Mas não sofria por isso. O que lhe causa dor é o baque brutal que a Igreja passa depois do Concílio Vaticano II, que foi magnífico, mas mal interpretado por intrusos. Lá estavam, inclusive, teólogos que foram até as fronteiras, e além das fronteiras...

Muitas grandes cabeças perderam o juízo, os conventos se esvaziaram, os seminários se fecharam. A liturgia foi manipulada, ridicularizava-se o culto, a laxidão moral se converteu no auge, o desamor à Igreja proliferava e pululavam as críticas ao Papa... e tudo isso fazia chorar um sacerdote fiel que ama Jesus Cristo com loucura. Também o faziam mortificar-se. E rezar. Naquela época, quando se barbeava, olhava sua cara e dizia a si mesmo: “Josemaria, você era tão jovial! Veja agora quantas rugas e que olheiras!”. Mas tudo isso não o entristecia. Serve-lhe de estímulo para crescer em seu desejo de santidade. Dá mais exemplo e mais gritos de alerta. Construir a cidade de Deus na cidade dos homens sempre foi, é e será uma veemente tarefa.

Padre e pai

Escrivá foi um sacerdote celibatário, mas que foi pai de muitas almas em um momento em que ser um padre era provocador. Ainda assim, rapidamente ele foi notando que sua missão sacerdotal amadurecia e progredia convertendo-se numa vocação de paternidade, por outro lado, muito pouco protecionista. Não era um pai autoritário, mas cuidadoso e carinhoso. Assim foi com seus filhos na Obra, mas também com as pessoas daquela sociedade em que colocou os primeiros cimentos de seu zelo sacerdotal. Aquela cidade de Madri, com suas mendigas e seus mendigos, com suas doentes e seus doentes entre quem era abundante a oração pelos primeiros passos do Opus Dei, e inclusive as primeiras vocações para a Obra.

Desde muito jovem experimentou a paternidade espiritual com uma maturidade chamativa. Acreditava que todo sacerdote devia ser um pai para seus paroquianos: um pai compreensivo, que exige, que acaricia, que cura. Uma noite, em Roma, ao finalizar um tertúlia com rapazes na faixa dos vinte anos, alguns deles se colocaram no corredor para despedirem-se dele, na saída. Faz o sinal da cruz na fronte de um deles, enquanto diz: “Que Deus te abençoe, meu filho. E que costurem o botão da sua camisa”. Ao vivo, os contrastes.

Sacerdote e anticlerical

Escrivá foi um sacerdote anticlerical. Ele mesmo dizia isso, também porque naquele contexto social havia muito clericalismo no ambiente, ao menos na Espanha. O normal era que colocassem o padre nos lugares de honra. Ele era muito simples e muito alérgico aos privilégios. Na época, era habitual encontrar-se com cristãos muito absorvidos nas igrejas e nas sacristias rançosas. Ele amava a rua profundamente. Seu sacerdócio estava muito ligado aos anseios e aos problemas dos seus contemporâneos. Não tinha nenhum interesse por fazer carreira clerical. Queria ser simplesmente um padre, e nada mais.

Era um ardoroso defensor de que o clero se intrometa o mínimo nas questões civis e de que os padres não mandem, mas sirvam. Esse anticlericalismo de Escrivá era importante naquela época. Já agora, não tanto, porque, em nossos tempos, uma boa parte do mundo é anticlerical, mas por inimizade.

Celibato e canonização do matrimônio

Josemaria Escrivá era um rapaz de Barbastro, filho de um lojista. Quando pensou em ser sacerdote ao contemplar a chamada de Deus, sua disposição foi a de ser um instrumento. Ele disse sobre si mesmo que era um instrumento “inepto e surdo”. Mas não, foi útil e muito dócil. Em qualquer caso, foi um bom instrumento.

Naquela época, na própria Igreja havia cristãos de primeira e de segunda. Quem não era padre ou freira, tinha que se conformar com salvar-se agarrando-se a uma tábua. O carisma que Deus pôs em sua alma viria lembrar que todos podemos ser santos: solteiros e casados, homens e mulheres, daqui e dali. Um agricultor honesto, uma cantora de ópera, um jogador de futebol, uma médica, um professor, um varredor, uma empregada doméstica, e também as donas de casa. A santidade era para as madames ricas e para homens pobres. Inclusive para jornalistas, mas jornalistas bons, dos que falam e transmitem a verdade...

Escrivá recordou ao mundo que todos podemos ser cristãos de primeira categoria com aspirações à santidade sem necessidade de estar o dia todo em volta de um círculo piedoso. Por isso, no Opus Dei, cabemos todos; dos cem, os cem. Porque “Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”.

Como é possível que um caminho de santidade se converta em alvo das críticas, inclusive de dentro da Igreja? Pode ser que haja quem pensasse que a mensagem que Deus quer reconquistar com a Obra seja ambiciosa, e também pode ser que algumas pessoas do Opus Dei não tenham sido exemplares. A Obra é um caminho aberto a todos os que têm essa vocação concreta, que alegra a vida, ainda que seja exigente. Mas Deus não se deixar ganhar em generosidade.

A diferença entre uma pessoa do Opus Dei e um jesuíta, um carmelita ou um beneditino é que eles se fazem santos em detrimento do mundo, como quem se afasta para o deserto, e o carisma que Deus quis lembrar com São Josemaria, que tem muito a ver com os primeiros cristãos, gira ao redor da maravilha de encontrar Deus nas coisas de nossa vida, no meio do mundo. No templo e no trabalho. Nos sacramentos e na família. Nada de desertos! Rua e tudo o que tem a ver com isso! Mundo sem fronteiras.

Escrivá relacionava-se com Deus por fora e por dentro. Ia pelas estradas da Itália cumprimentando os sacrários que os campanários anunciavam, mas, principalmente conversava com Jesus como com um hóspede que carrega dentro de si. Em seu interior, anda com Ele de mãos dadas, mas também o considera como um espectador exterior, e não como o olho do Grande Irmão, nem como um vigilante, mas como um espectador, que se diverte com o que faz esse seu filho Josemaria.

Sentia-se olhado, admirado com um sorriso, aplaudido ou reprovado pelo Espectador. Isso é a presença de Deus: viver por dentro e por fora sabendo que Deus está muito perto. Tão perto, que é um habitante no seio de sua própria essência. Escrivá nunca se sentia sozinho, porque era consciente de que levava dentro de si a própria Trindade. Em todo esse pano de fundo é que se explica o seu celibato apaixonado.

Naquela época – aqui falamos dos anos 30 do século passado, nem faz tanto tempo... – não era fácil ser casado e aspirar à santidade. No fundo, estes homens e mulheres eram motivados a cumprir o dever matrimonial, a seguir os mandamentos da lei de Deus, a jejuar na quaresma, e um pouco mais. Se queriam crescer mais por dentro, que tivessem sido frades, e ponto final... E não. Deus, por meio do Opus Dei, refresca no seio da Igreja que uma pessoa casada pode e deve ser santíssima. Que deve estar à altura daquilo que se espera de um filho de Deus crescendo nas virtudes, decrescendo nos vícios, lutando por dentro e avançando na identificação com Cristo, como qualquer outra pessoa celibatária. São Isidro Labrador ou São Tomás More entenderam isso antes e muito bem. Seus trabalhos, suas esposas, seus princípios, suas lutas e suas boas ações os conduziram aos altares sendo homens casados. O matrimônio é um grande sacramento, tão grande que Cristo tem sua esposa na Igreja. A Igreja tem um esposo e tem que estar à altura dele, porque o esposo está a uma grande altura.

O Senhor abençoou o matrimônio com as duas mãos. São Josemaria também, e acrescentava: “Porque não tenho quatro...”. Seguindo a inspiração de Deus, o fundador do Opus Dei ajudou a tirar a poeira de uma ideia que já existia desde o princípio da Igreja: o matrimônio também é um caminho de santidade específica e concreta. Não é um caminho para ser beatos afincados ao templo, desvirtuando a sua vocação. Mesmo sendo celibatário, ele impulsionou no mundo uma verdade latente: que o matrimônio é um caminho para o céu que ilumina a vida de muitas pessoas.

Idealismo e realismo

Desde 1928, São Josemaria teve claro que a sua missão era fazer o Opus Dei na terra. E também tinha claríssimo algo que repetia com frequência: “Eu não sou fundador de nada, porque a Obra não é a obra de Escrivá, mas de Deus”. O ideal é altíssimo e justifica todas as audácias de sua vida e de muitas pessoas que conviveram e trabalharam ao seu lado. Sabia que Deus queria que o Opus Dei fosse uma realidade nos cinco continentes, e, ainda que comprovasse as dificuldades diariamente, decidiu embarcar nesta aventura. Em sua lógica de atuação o que comanda é a lógica de Deus, ainda que viva com os pés na terra e o coração no céu.

Elite profissional e periferias sociais

No Opus Dei, comentava Escrivá, “há uma só panela” da que se alimentam todos seus filhos. O rico, o pobre, o executivo americano e o indiano da última casta. Como na Igreja, na Obra se reflete também o drama social do nosso tempo, e o normal é que seja pintada como uma pirâmide onde há muito poucos ricos, muita pouca elite, e uma base de gente com modestos recursos. Ambas as realidades convivem também no Opus Dei. Mas as duas se alimentam da mesma panela, poque, como ele dizia: “eu tenho uma família saudável” que come e bebe da mesma espiritualidade. Uma só panela: para as elites e para a grande turma da arquibancada.

Villa Tevere e Vallecas

Paulo VI entendeu bem o Opus Dei, porque o primeiro que foi lhe explicar foi Álvaro del Portillo – hoje bem-aventurado -, antes de ser sacerdote, com seu uniforme de gala de engenheiro. O Pontífice viu logo, desde o começo, que o carisma estava dirigido a pessoas civis e leigas, ainda que os sacerdotes diocesanos também façam parte da Obra. Mas Paulo VI entendeu que a Obra não girava em torno a clérigos, mas entre pessoas comuns que se santificavam por meio de um trabalho feito da melhor maneira possível. O fato é que foi ele que animou Escrivá a montar uma casa – e “uma casa grande” – em Roma. E assim fez. No edifício que tinha sido embaixada da Hungria, e sem um tostão, depois de mais de onze anos de obras e ajudado por muitos de seus filhos e filhas daquela época, levantou-se Villa Tevere. Sem luxos. Com um aroma muito especial de feito em casa e a mão. E, ao mesmo tempo, refletindo tudo o que deve manifestar a sede central de uma instituição como a Obra. O nome da casa vem do fato de que o rio Tibre passa relativamente lá perto.

Por aquela mesma época, em torno aos anos 60, palpitavam também incipientes mudanças numa zona de Madri onde a cidade muda de nome e passava a se chamar Vallecas. Agora é uma zona emergente, mas na época era um canto marginalizado. Lá, animados também por São Josemaria, alguns da Obra e outras pessoas começaram a criar cooperativas de moradias para pessoas pobres, impulsionando e melhorando, assim, a qualidade de vida, porque os de baixo nem sempre tem que estar abaixo. Levantou-se com o suor de muitas frontes o colégio Tajamar. E também estão por lá os colégios Senara e Los Tilos. E a paróquia de Santo Alberto Magno, e outras iniciativas de pessoas da Obra e amigos que serviram para revitalizar o bairro.

Nos anos 60 não havia dinheiro nem para Villa Tevere, nem para Vallecas. Mas um e outro foram feitos. Ainda que fosse necessário escolher entre almoçar ou jantar mal, os homens e as mulheres do Opus Dei daquela época fizeram maravilhas com sua generosidade.

Rocha firme e coração de pai e mãe

O fundador do Opus Dei era uma pessoa exigente com a sua santidade e a das pessoas às que amava, e muito terno, especialmente com quem ele tinha por perto. Não era um corregedor. Era um pai com um coração que se manifestava, especialmente, diante dos doentes.

Opus Dei e obra feita por homens e mulheres

O Opus Dei é uma realidade divina feita por Helena, por Antonio, por João, por diversos casais, ou pelos meus próprios sobrinhos. Pessoas normais. Com virtudes e defeitos. Em geral, é formado por pessoas que querem ser fiéis à sua vocação e ao carisma de ser santos no meio do mundo: nel bel mezzo della strada (bem no meio da rua). Para bem e para mal. Podemos dar bom exemplo, ou mau exemplo. Não somos a Santíssima Trindade.

Para este carisma da Igreja, desde o princípio, Deus precisa de vocações, mas não para construir mais centros do Opus Dei, mas para ser santos. Isso nos lembra também os primeiros cristãos, e a turma de discípulos que rodeavam Jesus: onze e um traidor, mais as mulheres que agitaram o mundo com a notícia da ressurreição.

Desde a sua origem, a Igreja é construída por homens e mulheres. É importante que saibamos que o Espírito Santo, que a santifica, não é uma pombinha, nem uma chama de fogo, nem um drone... É um amor de fusão entre o Pai e o Filho. É a paixão encarnada. O cristão deve irradiar esta paixão, porque sem paixão somente ficamos com um churro com que não podemos fazer uma alavanca. Paixão é querer não ter outro objetivo que não seja o céu.

Sim. Algumas mulheres e homens do Opus Dei, para falar sinceramente, o defraudaram. Porque não se exigiram. Porque não foram rezadores. Porque não estão apaixonados por Jesus Cristo. Pelo que for. Ser do Opus Dei, como ser cristão coerente fiel à Igreja, é uma questão de amor. No amor sempre é possível crescer mais, e mais, e mais... No céu continuaremos amando mais e mais. O céu será uma loucura de amor, mas o treinamento acontece aqui. Josemaria Escrivá passou pela terra treinando para o abraço de Deus. Assim ele via a morte.

Túmulo em 1975 e transcendência de seu legado em 2023

Josemaria teve um destino claro desde que nasceu: a semeadura de uma espiritualidade que ajuda muitas pessoas a irem para o céu sendo santos, depois de ser felizes na terra. O legado não é seu, mas de Deus. Todos somos um pensamento eterno de Deus, inclusive além da morte, porque Deus é imortal.

Escrivá nos legou uma maneira de amar a Deus: uma espiritualidade, diria, com certo estilo. As pessoas do Opus Dei não são seres com um genuflexório em suas casas. Somos pessoas normais e batalhadoras.

Admiradores e haters

O fundador do Opus Dei repetia com frequência que optou por ocultar-se e desaparecer: “Que somente Jesus brilhe!”. Não queria espetáculo, nem ecos da sociedade, nem vaidades, nem elogios. Ele subiu nos palcos de muitas capitais do mundo para contagiar seu amor à Igreja e dizer claramente as verdades, principalmente depois do Concílio Vaticano II, quando havia muitos que se calavam e toleravam atropelamentos contra a doutrina e não explicavam as coisas, fugindo para dentro. Eu o acompanhei em algumas dessas viagens nas que se entregava completamente e sentia-se remunerado se essas conversas abertas animavam alguma pessoa a aproximar-se mais de Jesus e dos outros. Aqueles teatros e aqueles auditórios se enchiam de admiradores e curiosos, e muitas pessoas saíam movidas pela graça, porque Josemaria falava-lhes como homem de Deus. Daquelas tertúlias, alguns se dirigiam diretamente ao confessionário, ou para se casar, ou batizar os filhos. As palavras sinceras de Escrivá-instrumento geravam mudanças, porque levavam à graça de Deus.

Com suas virtudes e seus defeitos, era um homem que procurava imitar a Jesus Cristo. Na sua paternidade se abria, e essa proximidade cativante, veraz e sincera contagiava um entusiasmo potente pelo bem. Foi um bom pai porque foi um bom filho.

Houve gente que não quis que ele fosse canonizado em 2002, porque isso supunha canonizar o fundador do Opus Dei e todo um caminho de santidade. Em vida recebeu muitos ataques e viveu em sua carne o empenho de algumas pessoas por destruir a Obra. Estas punhaladas sobre seu coração não o levaram nem à tristeza, nem à queixa, mas a depender mais de Deus e das carícias de Nossa Senhora.

A Obra teve inimigos. Minha impressão é que esses inimigos – que nunca encontraram inimizade do outro lado – foram homens e mulheres invejosos. Se vocês querem um carisma, peçam-no a Deus! Se você quer ser santo tenha a liberdade e a valentia de sê-lo! Se você quer ter dons e virtudes humanas maravilhosas, apaixone-se por Jesus Cristo! Quem o impede disso? Deus está desejando que a santidade se estenda. Não sei o porquê dessa inveja de que haja mais santos e mais gente boa.

Quando o processo de canonização de São Josemaria foi aberto houve uma campanha de bombardeios, e isso porque a causa contava com não sei quantas assinaturas a favor de não sei quantos cardeais do mundo inteiro. Algumas pessoas que tinham sido da Obra e acabaram abandonando sua fé disseram muitas mentiras. Eu esperei que o processo terminasse para começar a escrever O homem de Villa Tevere. Falei com as testemunhas de mil coisas concretas tentando esclarecer as mentiras e as “pós-verdades” para contar a realidade, com suas luzes e sombras, e esclarecendo os contrastes. Muitos desses tópicos falsos já foram superados, mas, bem, pouca gente nunca tem algum inimigo.

Josemaria Escrivá de Balaguer durante a homilia "Amar o mundo apaixonadamente", na Universidade de Navarra

Falamos muito de contrastes e paradoxos. E, no entanto, São Josemaria foi um homem que viveu e pregou a unidade como prova infalível da autenticidade. Sua história nos fala de uma única pessoa, uma conduta coerente, um ensinamento de acordo com sua vida. É um santo único para toda a Igreja, pois para ele a unidade foi uma paixão dominante...

A unidade e a liberdade! Acima de tudo, a unidade com o Papa e com toda a Igreja. E unidade entre as pessoas da Obra como irmãos, sem predileções nem favoritismos. Nem grupinhos, nem turmas.

São Josemaria é uma pessoa somente para o século 20?

São Josemaria é um pensamento eterno de Deus. Como você e como eu.

Com a rapidez com que nossos tempos avançam, para alguns ele pode parecer um fundador ou monsenhor de outra época...

Não creio nisso. Para alguns cristãos, o modelo para imitar Jesus Cristo pode ser Santo Agostinho, ou Santo Inácio. Para um militar pode ser César Augusto, Napoleão ou Patton. Os modelos são atemporais. Josemaria foi um rapaz de um povoado que descobriu a chamada de Deus depois de ver as pegadas na neve dos pés descalços de outro homem de fé. A santidade tem um efeito sobre a vida das pessoas que transcende qualquer tempo e qualquer cálculo.

Josemaria Escrivá é uma pessoa que atrai por sua espiritualidade, que é mais simples do que parece, ainda que não seja fácil de entender. É muito natural. Nada no Opus Dei é rocambolesco. Trata-se de colocar bem a mesa, varrer as migalhas e converter essa ação numa oração. A santidade é um ideal grande e bom que vale a pena.

Este homem de Villa Tevere fala também aos jovens do século 21?

Os jovens do século 21 não tem direito a ser santos? Os jovens do século 21 serão os homens de amanhã, e os avós e bisavós de depois de amanhã. Eles também desejam amar, mas também têm que dar exemplo e também contam com a graça divina para ir para o céu pelo caminho que os torne mais felizes.

O que este libro significou na sua história?

Para mim foi como uma badalada de um sino. Senti que eu era de bronze bruto e que deveria fundir-me de novo. Este libro me ajudou muito. Enquanto o escrevia, Deus quis que eu fosse me abrindo ao seu pensamento. Em algumas passagens eu mesma percebo que Deus falava comigo. Quando o leio, fico impressionada, porque é minha letra e meu estilo, porque os pontos e vírgulas e as expressões são meus, mas há um fundo latente e uns modos de dizer que foi Ele que colocou lá.

Álvaro Sánchez León