Os “defeitos” e a santidade

“A santidade está na luta, em saber que temos defeitos e em tratar heroicamente de evitá-los”. São Josemaria recordava muitas vezes que os defeitos (nossos e dos outros) também são um caminho para o Céu. Este texto, do “Diccionario de san Josemaria Escrivá de Balaguer” explica algumas chaves dos seus ensinamentos.

  1. Defeitos e luta ascética.
  2. A caridade e os defeitos do próximo.

Em sentido amplo, a palavra “defeito” indica a imperfeição física ou moral de uma coisa ou de um sujeito, ou – o que é equivalente – que essa coisa ou sujeito carece de uma qualidade devida. A literatura teológica espiritual costuma distinguir entre defeito e pecado. Considera-se pecado a infração voluntária da lei ou da vontade divina, quer em matéria grave (pecado mortal), quer em matéria leve (pecado venial). Os defeitos são mais as deficiências ou limites do caráter, anímicos ou físicos, que uma pessoa pode apresentar; portanto são independentes da vontade, embora o comportamento de uma pessoa possa torná-los mais graves (e ser, nesse sentido, um mal voluntário, se forem voluntariamente aceitos ou cometidos), atenuá-los ou mesmo fazê-los desaparecer. Frequentemente, no entanto, esta distinção não é aplicada de modo nítido e se fala conjuntamente de defeitos e pecados.

No ensinamento espiritual de São Josemaria, os defeitos aparecem em dois contextos principais: no da luta ascética pessoal, como uma realidade com a qual devemos contar e contra a qual é preciso lutar, com a ajuda da graça, para alcançar a santidade; e na relação com os outros, sob a ótica da caridade e do apostolado: amar os outros com seus defeitos, ajudando-os a corrigi-los.

1. Defeitos e luta ascética

    No primeiro contexto, os defeitos são, para São Josemaria, consequência da limitação humana e também do pecado; algo, portanto, com o que sempre devemos contar, porque só no Céu atingimos a perfeição: “Sei que a ideia de combate evoca imediatamente a nossa fraqueza, e prevemos as quedas, os erros. Deus conta com isso. É inevitável que, ao caminharmos, levantemos poeira. Somos criaturas e estamos cheios de defeitos. Eu diria até que os teremos sempre; são as sombras que fazem ressaltar mais em nossa alma, por contraste, a graça de Deus e os nossos esforços por corresponder ao favor divino. E esse claro-escuro tornar-nos-á humanos, humildes, compreensivos, generosos” (É Cristo que passa, 76).

    Sua visão é, porém, sempre positiva e otimista, enfocada a partir de um decidido desejo de alcançar a santidade e de uma certeza do poder da graça, e, portanto, da luta ascética pessoal: podemos aspirar a superar qualquer defeito, embora se trate de tarefa para a vida inteira:“A santidade está na luta, em saber que temos defeitos e em procurar heroicamente evitá-los. A santidade – insisto – está em superar esses defeitos..., mas morreremos com defeitos: se não, já te disse seríamos uns soberbos” (Forja, 312).

    “A experiência do pecado não nos deve, pois, fazer duvidar da nossa missão. É certo que os nossos pecados podem dificultar que Cristo seja reconhecido, e por isso devemos combater as nossas misérias pessoais, procurar a purificação. Porém, conscientes de que Deus não nos prometeu a vitória absoluta sobre o mal durante esta vida, mas nos pede luta. Sufficit tibi gratia mea (2 Cor 12,9), basta-te a minha graça, respondeu Deus a Paulo, quando o apostolo lhe pedia que o libertasse do aguilhão que o humilhava. O poder de Deus manifesta-se na nossa fraqueza e incita-nos a lutar, a combater os nossos defeitos, embora saibamos que nunca obteremos uma vitória completa durante o nosso peregrinar terreno. A vida cristã é um constante começar e recomeçar, um renovar-se cada dia” (É Cristo que passa, 114).

    Nessa luta contra os próprios defeitos, o primeiro passo é conhecê-los e “reconhecê-los”, aceitá-los; São Josemaria dá, por isso, particular importância ao exame de consciência, como meio ascético prático imprescindível no caminho da santidade: “Deves ter uma sinceridade “selvagem” no exame de consciência; quer dizer, coragem: a mesma com que te olhas no espelho, para saber onde te feriste ou onde te manchaste, ou onde estão os teus defeitos, que tens de eliminar” (Sulco, 148).

    Um exame, portanto, particularmente atento e profundo, “selvagemente sincero”, porque os defeitos mais importantes podem estar muito escondidos; e um exame que é sempre oração, diálogo com Deus, não mera introspecção pessoal: a sinceridade com Deus e consigo estão intimamente unidas (cfr. Sulco, 739). Tendo sido identificados e aceitos os defeitos, nessa oração simples e sincera que leva ao conhecimento próprio, é preciso lutar contra eles: procurar corrigi-los e eliminá-los. Luta na qual São Josemaria destaca o papel da mortificação, insistindo, uma vez mais, em um binômio clássico da ascética cristã: oração e mortificação: “Cada dia um pouco mais – tal como ao esculpir na pedra ou na madeira – é preciso ir limando asperezas, tirando defeitos da nossa vida pessoal, com espírito de penitência, com pequenas mortificações, que são de dois tipos: as ativas – as que procuramos, como florezinhas que apanhamos ao longo do dia – e as passivas, que vêm de fora e nos custam aceitar. Depois, Jesus vai completando o que falta. – Que Crucifixo tão maravilhoso vais ser, se corresponderes com generosidade, com alegria, totalmente!” (Forja, 403).

    Nestas palavras, insinua-se, além disso, o fundamento teológico definitivo dessa luta ascética contra os próprios defeitos: a Redenção realizada por Jesus Cristo, que tem seu centro na Cruz. Ou seja: é o próprio Senhor que vai limando nossos defeitos, com a sua graça e com nossa cooperação, tornando-nos cada vez mais parecidos com Ele: o Cordeiro sem mancha, sem defeitos.

    Por outro lado, coerentemente com seus ensinamentos sobre a vida cotidiana, o valor das coisas pequenas, etc., São Josemaria insiste na perseverança diária nessa luta; e com seu profundo otimismo, sabe “passar por cima” dos defeitos mais resistentes: “A nossa vida – a dos cristãos – tem de ser assim vulgar: procurar fazer bem, todos os dias, as mesmas coisas que temos obrigação de viver; realizar no mundo a nossa missão divina, cumprindo o pequeno dever de cada instante. – Melhor: esforçando-nos por cumpri-lo, porque às vezes não o conseguimos, e ao vir a noite, no exame, teremos que dizer ao Senhor: Não te ofereço virtudes; hoje só posso oferecer-te defeitos, mas – com a tua graça – chegarei a chamar-me vencedor” (Forja, 616).

    São Josemaria também não esquece uma experiência frequente, com relação aos próprios defeitos, das pessoas que já vão avançando em seu caminho de santidade: “Procuremos fomentar no fundo do coração um desejo ardente, uma ânsia grande de alcançar a santidade, ainda que nos contemplemos cheios de misérias. Não nos assustemos. À medida que se avança na vida interior, percebem-se com mais clareza os defeitos pessoais. Acontece que a ajuda da graça se transforma numa espécie de lente de aumento, e até a partícula mais minúscula de pó, o grãozinho de areia quase imperceptível, aparecem com dimensões gigantescas, porque a alma adquire a finura divina, e mesmo a menor das sombras incomoda a consciência, que só se satisfaz com a pureza de Deus. Dize-o agora ao Senhor, do fundo do teu coração: Senhor, quero de verdade ser santo, quero de verdade ser um digno discípulo teu e seguir-te sem condições. E logo a seguir deves fazer o propósito de renovar diariamente os grandes ideais que te animam neste momento” (Amigos de Deus, 20). O amor a Deus leva assim a não pactuar ou a dar pouca importância aos próprios defeitos e misérias, afastando uma evitando comodidade que leva à tibieza espiritual e ao aburguesamento.

    2. A caridade e os defeitos do próximo.

      A continuação da última citação leva diretamente ao segundo âmbito de utilização espiritual por parte de São Josemaria sobre a expressão “defeitos”: “Jesus, se nós, os que estamos reunidos no teu Amor, fôssemos perseverantes! Se conseguíssemos traduzir em obras esses anelos que Tu mesmo despertas na nossa alma! Perguntai-vos com muita frequência: Eu, para que estou na terra? E assim procurareis atingir o perfeito acabamento – cheio de caridade – nas tarefas que empreenderdes em cada jornada e no cuidado com as coisas pequenas. Prestaremos atenção ao exemplo dos santos: pessoas como nós, de carne e osso, com fraquezas e debilidades, que souberam vencer e vencer-se por amor de Deus. Consideraremos a sua conduta e – como as abelhas, que destilam de cada flor o néctar mais precioso – aproveitaremos com as suas lutas. Vós e eu aprenderemos também a descobrir muitas virtudes naqueles que nos rodeiam – dão-nos lições de trabalho, de abnegação, de alegria... – e não nos deteremos demasiado nos seus defeitos, a não ser quando for imprescindível para os ajudarmos com a correção fraterna” (Amigos de Deus, 20).

      Desta perspectiva, o ponto de partido volta a ser a constatação clara de que existem defeitos no ser humano: neste caso, nos outros. A dificuldade para o caminho pessoal de santidade surge então da nossa inclinação (consequência também do pecado) a reagir contra a pessoa que possui os defeitos, e não contra os defeitos em si, fechando assim o caminho a uma verdadeira ajuda, ao exercício da caridade. Por isso, para São Josemaria, a chave está em ver, primeiro compreender, depois e, sobretudo, amar a pessoa como tal, por cima de seus defeitos; ou melhor, “com os seus defeitos”.

      Trata-se de um ensinamento de origem evangélica (cfr Mt 6, 22-23 e 7,3) que São Josemaria torna seu: “Os defeitos que vês nos outros talvez sejam os teus próprios. ‘Si oculus tuus fuerit simplex...’ – Se o teu olho for simples, todo o teu corpo estará iluminado; mas se for malicioso, todo o teu corpo estará obscurecido. E mais ainda: ‘Como te pões a olhar o cisco no olho de teu irmão, e não reparas na trave que está dentro do teu’? – Examina-te” (Sulco, 328).

      São Josemaria vai até o fim com relação às consequências deste comportamento, baseado na verdadeira caridade cristã: “Tens de amar os teus irmãos, os homens, até ao extremo de que inclusivamente os seus defeitos - quando não são ofensa a Deus – não te pareçam defeitos. Se não amas senão as boas qualidades que vejas nos outros – se não sabes compreender, desculpar, perdoar – és um egoísta” (Forja, 954).

      Uma aplicação particular destas ideias, frequente na pregação de São Josemaria, que dá um grande valor cristão e social à família, corresponde à vida matrimonial, ao relacionamento entre os cônjuges: “Que se queiram. E que saibam que ao longo da vida haverá rixas e dificuldades que, tratadas com naturalidade, contribuirão inclusive para tornar mais profundo o carinho. Cada um de nós tem seu caráter, seus gostos pessoais, seu gênio – seu mau gênio às vezes – e seus defeitos. Cada um tem também coisas agradáveis em sua personalidade, e por isso e por muito mais razões, deve-se querer a todos. A convivência é possível quando todos tratam de corrigir os próprios defeitos e procuram passar por cima das faltas dos outros: quer dizer, quando há amor, que anula e supera tudo o que falsamente poderia ser motivo de separação ou divergência. Pelo contrário se os pequenos contrastes são dramatizados e se começa a jogar na cara do outro os defeitos e os equívocos, a paz acaba então e se corre o risco de matar o carinho” (Conversaciones, 108).

      Outra aplicação, coerente agora com seu profundo sentido eclesial, refere-se à Igreja: “Gens sancta, povo santo, composto por criaturas com misérias: esta aparente contradição marca um aspecto do mistério da Igreja. A Igreja, que é divina, é também humana, porque é formada por homens e nós homens temos defeitos (...). Quando o Senhor permitir que a fraqueza humana apareça, nossa reação deve ser a mesma que se víssemos nossa mãe doente ou tratada com indiferença: amá-la mais, ter com ela mais demonstrações exteriores e interiores de carinho. Se amamos a Igreja não teremos nunca esse interesse mórbido em mostrar, como culpa da Mãe, as misérias de alguns dos filhos” (Amar a Igreja, pp. 29-31). Encontramos também, finalmente, no ensinamento de São Josemaria uma espécie de confluência entre estes dois aspectos do papel que os “defeitos” desempenham na vida espiritual: o choque entre os defeitos pessoais e os do próximo devem levar-nos, ao mesmo tempo, a compreender, a ajudar e a corrigi-los: “Chocas com o caráter deste ou daquele... Tem de ser assim necessariamente; não és moeda de ouro que a todos agrade. Além disso, sem esses choques que se produzem ao lidar com o próximo, como havias de perder as pontas, as arestas e saliências – imperfeições, defeitos - do teu temperamento, para adquirires a forma cinzelada, polida e energicamente suave da caridade, da perfeição? Se o teu caráter e o caráter dos que convivem contigo fossem adocicados e moles como gelatina, não te santificarias” (Caminho, 20).

      Como síntese de todas essas ideias, pode servir o seguinte ponto de Sulco: “Dizes que o outro está cheio de defeitos! Muito bem... Mas, além de que os perfeitos só se encontram no Céu, tu também arrastas os teus defeitos e, no entanto, suportam-te e, mais ainda, estimam-te: porque te querem com o amor que Jesus Cristo dava aos seus, que bem carregados andavam de misérias! - Aprende!” (Sulco, 758).


      Bibliografia: Francisco Fernández-Carvajal – Pedro Beteta, Filhos de Deus. A filiação divina que o Beato Josemaria Escrivá viveu e pregou, Madri, Palabra, 1995.

      Fernando Ocáriz, Natureza, graça e glória, EUNSA, 2001. Javier SESÉ