Natal com o Papa Francisco

Publicamos a homilia do Papa Francisco proferida em 24 de dezembro de 2023 na Santa Missa na véspera de Natal e a mensagem "Urbi et Orbi" proferida no dia 25 de dezembro.

Mensagem Urbi et Orbi (25 de dezembro de 2023)

Queridos irmãos e irmãs, feliz Natal!

O olhar e o coração dos cristãos de todo o mundo estão voltados para Belém; lá, onde nestes dias reinam a dor e o silêncio, ressoou o anúncio esperado há séculos: "Nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor" (Lc 2, 11). Trata-se das palavras do anjo no céu de Belém, que são dirigidas também a nós. Enche-nos de confiança e esperança saber que o Senhor nasceu para nós; que a Palavra eterna do Pai, o Deus infinito, fixou a sua morada entre nós. Fez-Se carne, veio "habitar conosco" (Jo 1, 14): esta é a notícia que muda o curso da história!

O anúncio de Belém é o anúncio de uma "grande alegria" (Lc 2, 10). Qual alegria? Não a felicidade passageira do mundo, nem a alegria da diversão, mas uma alegria "grande" porque nos faz "grandes". De fato hoje nós, seres humanos, com as nossas limitações, abraçamos a certeza de uma esperança inaudita: a esperança de termos nascido para o Céu. Sim, Jesus nosso irmão veio fazer do Seu Pai o nosso Pai: Menino frágil, revela-nos a ternura de Deus e muito mais… Ele, o Unigênito do Pai, dá aos homens o "poder de se tornarem filhos de Deus" (Jo 1, 12). Eis a alegria que consola o coração, renova a esperança e dá a paz: é a alegria do Espírito Santo, a alegria de ser filhos amados.

Irmãos e irmãs, hoje em Belém, por entre as trevas da terra, acendeu-se esta chama inextinguível; hoje, sobre as trevas do mundo, prevalece a luz de Deus, que "a todo o homem ilumina" (Jo 1, 9). Irmãos e irmãs, alegremo-nos por esta graça! Alegra-te, tu que te vês falho de confiança e de certezas, porque não estás sozinho, não estás sozinha: Cristo nasceu para ti! Alegra-te, tu que perdeste a esperança, porque Deus te estende a mão: não aponta o dedo contra ti, mas oferece-te a sua mãozinha de Menino para te libertar dos medos, aliviar-te das canseiras e mostrar-te que, aos olhos d’Ele, vales mais do que qualquer outra coisa. Alegra-te, tu que tens a paz no coração, porque se cumpriu para ti a antiga profecia de Isaías: "Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado (…) e o seu nome é: (…) Príncipe da paz" (9, 5). A Sagrada Escritura revela que a sua paz, o seu reino "não terá fim" (9, 6).

Na Bíblia, ao Príncipe da paz opõe-se o "príncipe deste mundo" (Jo 12, 31), que, semeando a morte, atua contra o Senhor, "amante da vida" (Sab 11, 26). Vemo-lo atuar em Belém, quando, depois do nascimento do Salvador, se verifica a matança dos inocentes. Quantas matanças de inocentes no mundo! No ventre materno, nas rotas dos desesperados à procura de esperança, nas vidas de muitas crianças cuja infância é devastada pela guerra. São os pequeninos Jesus de hoje, estas crianças cuja infância é devastada pela guerra, pelas guerras.

Deste modo dizer "sim" ao Príncipe da paz significa dizer "não" à guerra. E isto com coragem: dizer "não" à guerra, a toda a guerra, à própria lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Isto é a guerra: viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Mas, para dizer "não" à guerra, é preciso dizer "não" às armas. Com efeito, se o homem, cujo coração é instável e está ferido, encontrar instrumentos de morte nas mãos, mais cedo ou mais tarde usá-los-á. E como se pode falar de paz, se cresce a produção, a venda e o comércio das armas? Hoje, como no tempo de Herodes, as conspirações do mal, que se opõem à luz divina, movem-se à sombra da hipocrisia e do escondimento. Quantos massacres armados acontecem num silêncio ensurdecedor, ignorados de tantos! O povo, que não quer armas mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.

Isaías, que profetizara o Príncipe da paz, deixou escrito que virá um dia em que "uma nação não levantará a espada contra outra"; um dia em que os homens "não se adestrarão mais para a guerra", mas "transformarão as suas espadas em relhas de arado, e as suas lanças em foices" (2, 4). Com a ajuda de Deus, esforcemo-nos para que se aproxime esse dia!

Aproxime-se em Israel e na Palestina, onde a guerra abala a vida daquelas populações. A todas abraço, em particular às comunidades cristãs de Gaza – à paróquia de Gaza – e de toda a Terra Santa. Trago no coração a dor pelas vítimas do execrável atentado de 7 de outubro passado, e renovo um premente apelo pela libertação de quantos se encontram ainda reféns. Suplico que cessem as operações militares, com o seu espaventoso rasto de vítimas civis inocentes, que se ponha remédio à desesperada situação humanitária, possibilitando a entrada das ajudas. Não se continue a alimentar violência e ódio, mas avance-se no sentido de uma solução para a questão palestiniana, através de um diálogo sincero e perseverante entre as Partes, sustentado por uma forte vontade política e pelo apoio da comunidade internacional. Irmãos e irmãs, rezemos pela paz na Palestina e em Israel.

Depois o meu pensamento volta-se para a população da atribulada Síria, bem como para a do Iémen, mergulhada no sofrimento. Penso no amado povo libanês e rezo para que possa em breve encontrar estabilidade política e social.

Com os olhos fixos no Menino Jesus, imploro a paz para a Ucrânia. Renovemos a nossa proximidade espiritual e humana ao seu martirizado povo, para que, graças ao apoio de cada um de nós, possa sentir o amor concreto de Deus.

Aproxime-se o dia da paz definitiva entre a Armênia e o Azerbaijão. Seja ela favorecida através da prossecução das iniciativas humanitárias, o regresso dos deslocados às suas casas na legalidade e em segurança, e o respeito mútuo pelas tradições religiosas e locais de culto de cada comunidade.

Não esqueçamos as tensões e os conflitos que transtornam a região do Sahel, o Corno de África, o Sudão, bem como os Camarões, a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul.

Aproxime-se o dia em que serão reforçados os laços fraternos na península coreana, abrindo percursos de diálogo e reconciliação que possam criar as condições para uma paz duradoura.

O Filho de Deus, feito humilde Menino, inspire as autoridades políticas e todas as pessoas de boa vontade do continente americano para se encontrarem soluções idôneas a fim de superar os dissídios sociais e políticos, lutar contra as formas de pobreza que ofendem a dignidade das pessoas, aplanar as desigualdades e enfrentar o doloroso fenômeno das migrações.

Reclinado no presépio, o Menino pede-nos para sermos voz de quem não tem voz: a voz dos inocentes, que morreram por falta de água e pão; voz de quantos não conseguem encontrar emprego ou que o perderam; voz de quem é constrangido a abandonar a sua terra natal à procura de um futuro melhor, arriscando a vida em viagens extenuantes e à mercê de traficantes sem escrúpulos.

Irmãos e irmãs, aproxima-se o tempo de graça e esperança do Jubileu, que vai começar dentro de um ano. Que este período de preparação seja ocasião para converter o coração; para dizer "não" à guerra e "sim" à paz; responder com alegria ao convite do Senhor que nos chama, como profetizou Isaías, "para levar a boa-nova aos pobres, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros" (61, 1).

Estas palavras cumpriram-se em Jesus (cf. Lc 4, 18), hoje nascido em Belém. Acolhamo-Lo, abramos o coração a Ele, o Salvador! Abramos o coração a Ele, o Salvador, que é o Príncipe da paz!


Homilia da Santa Missa de Natal (24 de dezembro de 2023)

"O recenseamento de toda a terra" (Lc 2, 1): este é o contexto em que nasce Jesus e no qual se detém o Evangelho. Podia limitar-se a uma rápida alusão, mas ao contrário delonga-se cuidadosamente nele. E assim faz surgir um grande contraste: enquanto o imperador conta os habitantes do mundo, Deus entra nele quase às escondidas; enquanto quem manda procura colocar-se entre os grandes da história, o Rei da história escolhe o caminho da pequenez. Nenhum dos poderosos se dá conta d’Ele; apenas alguns pastores, postos à margem da vida social.

Mas o recenseamento diz-nos mais outra coisa. Na Bíblia, não deixara boas recordações. O rei David, cedendo à tentação dos grandes números e a uma malsã pretensão de autossuficiência, cometera um grave pecado precisamente fazendo o recenseamento do povo. Queria saber a sua força recebendo, cerca de nove meses depois, o número de todos os que podiam manejar a espada (cf. 2 Sam 24, 1-9). O Senhor indignou-se e um flagelo feriu o povo. Diversamente nesta noite, o "Filho de David", Jesus, depois de passar nove meses no ventre de Maria, nasce em Belém, a cidade de David, e não pune o recenseamento, mas deixa-se humildemente registar: um, no meio de tantos. Não vemos um Deus irado que castiga, mas o Deus misericordioso que encarna, que entra, frágil, no mundo, precedido pelo anúncio "paz na terra aos homens" (Lc 2, 14). E, nesta noite, o nosso coração está em Belém, onde o Príncipe da paz continua a ser rejeitado pela lógica perdedora da guerra, com o estrondo das armas que ainda hoje O impede de encontrar alojamento no mundo (cf. Lc 2, 7).

Em suma, o recenseamento de toda a terra manifesta, por um lado, a trama demasiado humana que atravessa a história: a trama de um mundo que procura o poder e a força, a fama e a glória, onde tudo se mede através dos sucessos e dos resultados, dos cálculos e dos números. É a obsessão das façanhas. Mas ao mesmo tempo, no recenseamento, sobressai o caminho de Jesus, que vem procurar-nos através da encarnação. Não é o deus das façanhas, mas o Deus da encarnação. Não subverte do alto as injustiças com a força, mas de baixo com o amor; não irrompe com um poder sem limites, mas desce até aos nossos limites; não evita as nossas fragilidades, mas adota-as.

Nesta noite, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: Em que Deus acreditamos? No Deus da encarnação ou no das façanhas? Sim, porque há o risco de viver o Natal tendo na cabeça uma ideia pagã de Deus, como se fosse um patrão poderoso que está no céu; um deus que se alia com o poder, o sucesso mundano e a idolatria do consumismo. Sempre volta a imagem falsa de um deus alheado e melindroso, que se comporta bem com os bons e se irrita com os maus; um deus feito à nossa imagem, útil apenas para nos resolver os problemas e preservar dos males. Mas o Deus Menino não usa a varinha mágica, não é o deus comercial do "tudo e já"; não nos salva carregando num botão, mas faz-Se próximo para mudar a realidade a partir de dentro. E todavia como está radicada em nós a ideia mundana de um deus distante e controlador, rígido e poderoso, que ajuda os seus a prevalecerem contra os outros! Muitas vezes, trazemos radicada em nós esta imagem; mas não é assim: Ele nasceu para todos, durante o recenseamento de toda a terra.

Olhemos, pois, para o "Deus vivo e verdadeiro" (1 Tes 1, 9): Ele que está para além de todo o cálculo humano e, no entanto, deixa-Se recensear pelos nossos registos; Ele que revoluciona a história, habitando nela; Ele que nos respeita até ao ponto de nos permitir rejeitá-Lo; Ele que apaga o pecado assumindo a responsabilidade pelo mesmo, que não tira a dor, mas transforma-a, que não nos tira os problemas da vida, mas dá às nossas vidas uma esperança maior do que os problemas. Deseja tanto abraçar as nossas existências que, sendo infinito, por nós Se faz finito; grande, faz-Se pequeno; sendo justo, habita as nossas injustiças. Irmãos e irmãs, aqui está a maravilha do Natal: não uma mistura de sentimentos adocicados e confortos mundanos, mas a inaudita ternura de Deus que salva o mundo encarnando-Se. Fixemos o Menino, olhemos para a sua manjedoura, para o presépio, que os anjos chamam "o sinal" (Lc 2, 12): realmente constitui o sinal revelador do rosto de Deus, que é compaixão e misericórdia, omnipotente sempre e só no amor. Avizinha-Se, torna-Se próximo, terno e compassivo… Este é o modo de ser de Deus: proximidade, compaixão, ternura.

Irmãs, irmãos, deixemo-nos surpreender por Ele Se ter feito carne (cf. Jo 1, 14). Carne! Uma palavra que evoca a nossa fragilidade e que o Evangelho utiliza para nos dizer como Deus entrou profundamente na nossa condição humana. Por que motivo foi Ele tão longe? – perguntamo-nos. Porque Lhe interessa tudo o que nos diz respeito, porque nos ama até ao ponto de nos considerar mais preciosos do que qualquer outra coisa. Irmão, irmã, para Deus, que mudou a história durante o recenseamento, tu não és um número, mas um rosto; o teu nome está escrito no seu coração. Entretanto, se olhares para o teu coração, para as façanhas que não sentes à altura, para o mundo que julga e não perdoa, poderás talvez viver mal este Natal, pensando que não caminhas justamente, provando um sentimento de inadequação e insatisfação pelas tuas fragilidades, quedas e problemas e pelos teus pecados. Mas hoje, por favor, deixa a iniciativa a Jesus, que te diz: "Por ti fiz-Me carne, por ti fiz-Me como tu". Por que motivo continuas na prisão das tuas tristezas? Como os pastores que deixaram os seus rebanhos, deixa o recinto das tuas melancolias e abraça a ternura do Deus Menino. Fá-lo sem máscaras, sem couraças, confia-Lhe as tuas canseiras, e Ele cuidará de ti (cf. Sal 55, 23): Ele, que Se fez carne, espera, não as tuas façanhas de sucesso, mas o teu coração aberto e confiado. E n’Ele descobrirás quem és: um filho amado de Deus, uma filha amada de Deus. Agora podes acreditar nisto, porque, nesta noite, o Senhor nasceu para iluminar a tua vida, e os olhos d’Ele cintilam de amor por ti. Sentimos dificuldade em crer nisto: que os olhos de Deus cintilam de amor por nós.

Sim, Cristo não olha para os números, mas para os rostos. E contudo quem é que olha para Ele, por entre as inúmeras coisas e as corridas loucas de um mundo sempre agitado e indiferente? Quem olha para Ele? Em Belém, enquanto muitas pessoas, preocupadas com o recenseamento, iam e vinham, enchiam as hospedarias e pousadas falando de tudo e de nada, houve alguns que estiveram junto de Jesus: Maria e José, os pastores e depois os magos. Aprendamos com eles. Ei-los com o olhar fixo em Jesus, com o coração voltado para Ele; não falam, mas adoram. Esta noite, irmãos e irmãs, é o tempo da adoração… Adorar.

A adoração é a forma de acolher a encarnação, porque é no silêncio que Jesus, Palavra do Pai, Se faz carne nas nossas vidas. Façamos nós também como se fez em Belém, que significa "casa do pão": permaneçamos diante d’Ele, Pão de vida. Redescubramos a adoração, porque adorar não é perder tempo, mas permitir a Deus que habite o nosso tempo; é fazer florescer em nós a semente da encarnação, é colaborar na obra do Senhor, que, como o fermento, muda o mundo. Adorar é interceder, reparar, consentir a Deus que endireite a história. Um grande narrador de feitos épicos assim escrevia ao seu filho: "Ofereço-te a única coisa grande que se deve amar sobre a terra: o Santíssimo Sacramento. Lá encontrarás encanto, glória, honra, fidelidade e o verdadeiro caminho de todos os teus amores na terra" (J.R.R. Tolkien, Carta 43, março de 1941).

Irmãos e irmãs, nesta noite, o amor muda a história. Fazei, Senhor, que acreditemos no poder do vosso amor, tão diverso do poder do mundo. Senhor, fazei que, à semelhança de Maria, José, os pastores e os magos, nos estreitemos ao vosso redor para Vos adorar. Feitos por Vós mais semelhantes a Vós, poderemos testemunhar ao mundo a beleza do vosso rosto.