A conversão de Paula, estudante chinesa em Lisboa

Sou a Paula, venho da China. Desde sempre apaixonada pelas línguas, decidi fazer o curso de Português na China. Quem sabe, enquanto eu sonhava em um dia ir conhecer o mundo lá fora, Deus sonhava em vir ao meu encontro. Nada fora do plano d'Ele, a ida a Portugal para prosseguir os meus estudos tornar-se-ia uma aventura espiritual.

De onde vim

Como se sabe, a China não é um país de ambiente religioso. Apenas 10% da população tem uma religião e, dentro dos 5% cristãos, somente 1% são católicos. A maioria das pessoas dizem-se ateus, mas de fato, ora têm crenças populares, ora usam termos budistas banalizados – a cultura chinesa recebeu muita influência do Budismo, portanto quase toda a gente sabe de alguns conceitos budistas, mesmo sem pertencer a essa religião. Entretanto, como a cultura chinesa valoriza muito o respeito uns aos outros, somos educados a não tratar ninguém com distinção, mesmo quando não entendemos as suas crenças ou não concordamos com as suas opiniões. No caso da minha família, não tínhamos nenhuma religião, nem conhecíamos nenhum amigo propriamente religioso, mas nunca vimos com maus olhos quem praticasse a sua religião.

O ser humano é um ser religioso. Quase por instinto, tentamos buscar um sentido para a vida, porque há tantos fenômenos à nossa volta que não entendemos com olhos humanos. Basta ver as notícias de cada dia para chorar pelo mal, pelo imprevisto, pelo sofrimento e pela fragilidade da condição humana. Quanto a mim mesma, uma moça normal em uma cidade normal, que nunca tive grandes dificuldades na vida a não ser o peer pressure de uma sociedade extremamente competitiva, e que não podia queixar-me de nada em termos materiais e emocionais, tendo crescido em uma família feliz, sofria cronicamente de inquietações sem nome. Tudo o que desejava perdia o sabor uma vez conseguido, tudo o que me contentava não me enchia, às coisas aparentemente perfeitas faltava sempre algo, e a atração de certas pessoas não me parecia consistir na própria pessoa. Detectei nas coisas deste mundo algo como se fosse uma imperfeição inerente, daí a minha insatisfação estranhíssima, uma insatisfação que não se podia comunicar com a língua, nem quando raciocinava comigo mesma, porque não tinha fundamento lógico. Mas sentia que ela permanecia em mim e me torturava, fazendo-me pensar até na morte.

Num ambiente em que toda a gente se ocupa em responder as perguntas vindas de fora, esquivamo-nos a encarar as perguntas que surgem de dentro. Lá estava eu, à beira de um poço fundo de dúvidas. Como não havia uma corda por onde agarrar, estava ciente de que tinha duas escolhas: ou lançar-me rumo a uma previsível tragédia, ou afastar-me do poço sem poder expulsá-lo do meu pensamento para o resto da vida. Habituei-me então a calar uma voz interior, culpando o meu caráter demasiado sensível. Carpe diem era o mote com o qual eu voluntariamente vendava os meus olhos, tal como faziam muitos jovens, avestruzes que enterram a cabeça no caleidoscópio do mundo.

Não obstante isso, desenvolvi o meu próprio sistema de crenças. Usava uma mistura de termos como Destino, Sorte, Deus, Providência, Karma, Outro Mundo, etc. Era uma mentalidade sincretista e pragmatista, ou seja, eu acreditava no que convinha à minha situação em determinado momento. Portanto, digamos que eu era um pouco de tudo: agnóstica, budista, taoista, etc., conforme as circunstâncias. Não era completamente ateia, pois para ser ateia, precisava de um fundamento e de uma fé tão firmes quanto os de um religioso, uma referência mental estável que eu não dispunha, sobretudo quando olhava para as coisas fora de qualquer explicação humana. Será que o ser humano é realmente dono de si e dono de tudo, como proclama a nossa educação marxista, quando nem a hora da sua própria morte sabe? Não é que temia a minha própria morte – talvez por uma coragem inocente da juventude, mas a pura imaginação de poder perder um ente querido a qualquer instante assombrava-me.

Mesmo que não entendesse as religiões, sempre imaginava que era bom ter uma crença, porque achava que quem tivesse uma fé firme devia ser pessoa com princípios. Fosse qual fosse a religião, a devoção dos seus crentes tinha algo inexplicavelmente comovente. Às vezes até sentia algo parecido com inveja, embora muito subtil, de quem tinha uma fé, pois parecia-me um barco ancorado no porto ou um homem errante chegado a casa. Contudo, nunca pensei em pertencer a nenhuma religião. “Era tudo autoconsolo”, falava mais alto a minha cabeça que o meu coração. Numa altura em que sofria intensamente de uma crise espiritual, comecei a investigar o Budismo, mas nunca cheguei a querer ser budista de verdade.

Não sabia praticamente nada sobre o Cristianismo, Catolicismo, Protestantismo, etc., a não ser a Bíblia, os nomes de Jesus e de Maria, pois é cultura geral. Mas via tudo isso como uma lenda da cultura ocidental, no mesmo plano que os mitos gregos.

Onde eu morava há igrejas, e as cidades ao redor também. Claro, não sabia da distinção entre uma igreja católica e uma protestante. Para mim, as igrejas, com as suas fachadas pomposas, eram apenas pontos turísticos e, quando muito, testemunhos de um passado da colonização.

Primeiro encontro, desencontro

Ainda na China, tive dois encontros com o Cristianismo – o Protestantismo, para ser mais exato, já que agora sei dizer.

Houve um ano em que fui fazer intercâmbio a Macau. Um dia, eu estava estudando na biblioteca, e uma moça chinesa aproximou-se de mim, perguntou se eu tinha ouvido falar de Jesus, e começou a contar a história dela. O conteúdo não me lembro bem, só me resta uma vaga impressão de que era dramático, que envolvia o suicídio de uma amiga dela, seguido pela sua sensação de culpa, onde entrou a luz salvífica de Deus. Aborreci-me prontamente, porque fui interrompida do meu estudo para ouvir uma história pouco acreditável de uma pessoa desconhecida (e quem sabia pura imaginação de uma lunática!). Logicamente, recusei com delicadeza o convite dela para conhecer mais amigos. Mal fugi da sua presença, vi-a aproximar-se de outros estudantes. Fiquei com tanta estranheza e medo que fui até falar com a segurança da biblioteca.

No meu último ano da faculdade conheci um casal, ele americano e ela brasileira, donos de uma livraria perto da faculdade. Pessoas muito simpáticas, convidavam-me e outros universitários para tertúlias, dizendo que era bom frequentar para fazer amigos, nem que fosse só para aperfeiçoar o inglês e o português. Desconfiada como sou, os encontros amigáveis rapidamente cheiraram-me religiosos, portanto estranhos. Queria cortar o contato com eles, mas não era capaz de ignorar as frequentes mensagens de cumprimento. Até um dia, quando me convidaram para um culto (parecido com Missa) e me ofereceram uma Bíblia, fiquei redondamente desapontada, achando que fazer amigos e praticar as línguas eram apenas desculpas que usavam para propagar a ideologia deles. Decidi – dessa vez sem a menor dúvida –, afastar-me desse grupo. Não me lembro do destino daquela Bíblia – se lhes devolvi ou se a joguei diretamente no lixo. Assim, o meu primeiro encontro com a Bíblia foi um desencontro.

Na realidade, na China, a propaganda na rua por aderentes de alguma religião/ organização/ atividade não é nenhuma novidade, embora não seja muito comum. Conhece-se notícias de pessoas enganadas por grupos fanáticos que tencionam desenvolver membros, lavando-lhes o cérebro para depois ficar com o dinheiro deles. É compreensível, portanto, o receio e a alerta dos chineses ao serem aproximados por desconhecidos. Eu pessoalmente não tinha nada contra o Cristianismo, mas pensando nos cristãos que eu encontrei, nunca deixei de duvidar que eles tivessem segundas intenções desse gênero.

Agora, encontrando-me com Deus, sinto também o ímpeto de evangelizar, e entendi que eram pessoas com boa intenção, mas a maneira de proceder deles não me parecia ideal. Apesar de tudo, recordo-os com carinho. Tenho a certeza de que eles tinham rezado por mim, e agora rezo por eles.

O começo de uma aventura

Já em Macau, fiquei muito amiga de uma professora portuguesa, com quem conversava e passeava com regularidade. Ela é adscrita da Obra, o que na altura eu não sabia. Ela nunca disse nada explícito sobre a sua fé, talvez para não me assustar. Pela minha observação, ela era uma cristã devota, que ia a Missa com certa frequência, mas isso só se mostrava ao nível pessoal – na relação comigo, ela nunca tentou impingir-me ideia nenhuma. A pessoa dela atraía-me por ser muitíssimo simpática e simples, diferente de muitos outros. A nossa amizade era confortável, que me inspirava confiança.

Depois da licenciatura, decidi aprofundar o meu conhecimento da língua e da cultura na sua nascente. Ao saber da minha preocupação de arranjar alojamento em Portugal, essa amiga recomendou-me a Residência Universitária das Laranjeiras. Quando vi no site da residência que era de natureza católica, pensei que tinha pouca possibilidade de ser aceite, porque não tinha religião e as vagas eram poucas. Aflita com o alojamento, até brinquei com os meus pais dizendo que não me importava tornar católica para ser residente. Fiz então uma entrevista online com a residência. Na entrevista, o que impressionou a mim e aos meus pais foi o sorriso das diretoras – via-se que não era um sorriso de circunstância, mas uma alegria transbordada do coração.

Cheguei a Lisboa muito maldisposta devido à longa e cansativa viagem. Vomitava tanto que nem tinha força de me mexer na cama. A diretora da residência entrou no meu quarto para me dar comprimidos. O carinho dela fez-me lembrar a minha mãe, a mais de 9000 km de distância. Fiquei surpreendida e cheia de emoção. Nunca vou me esquecer daquele sorriso doce, daqueles gestos acolhedores. A solidão e a angústia desapareceram num instante, e sentia-me em casa. Nessa noite, meio inconsciente, olhei para o quadro de Nossa Senhora em cima da minha cama e pensei: “Esta deve ser Nossa Senhora dos cristãos. Deve ser uma deusa com algum poder. Bom, senhora, agora só quero recuperar a minha saúde. Se tu me ajudares, vou acreditar em ti.” No dia seguinte, toda a gente ficou admirada ao ver-me “fresquinha que nem uma alface”, nas palavras da diretora. Não fiz caso, nem me lembrava mais, contudo, da minha promessa inocente a Nossa Senhora.

Na vida nas Laranjeiras, havia duas coisas que me impressionavam: primeiro, o amor e o carinho para com o próximo; segundo, a devoção religiosa. Reparei que havia muitos ritos religiosos na capela, as pessoas rezavam ou liam na capela e, dentro da casa, havia em todos os lados quadros e estátuas religiosas.

Sendo estudante de língua, interessava-me muito pela cultura. Sabia que a cultura portuguesa era marcada pelo Cristianismo e estava cheia de curiosidade. Querendo investigar tudo ao meu alcance, fui perguntar à diretora: “Não sou crente, mas queria ver como é que é uma Missa, posso?”. Ela riu-se e convidou-me para assistir a Missa quando eu quisesse. Da minha reserva da cultura geral, sabia que a Missa do domingo era algo obrigatório para os cristãos. Não faltava então a nenhuma Missa dominical, pensando que, já que estava em Roma, convinha ser romano para não ser expulso. Ia também espreitar a bênção, o terço, a meditação, etc. Claro, sem nenhum conhecimento, o que são para os cristãos Sacramentos ou formação eram para mim espetáculos aos quais convinha comparecer para lhes mostrar respeito – a sensação de novidade era sol de pouca dura, quando comecei a sentir seca, era pelo respeito e pela amizade que eu ia. Entretanto, nunca deixei de tirar curiosidades sobre a religião cristã perguntando às monitoras da residência.

Graças a Deus, tenho uma mente aberta, gosto de questionar as coisas e procurar a razão, sobretudo frente a opiniões diferentes das minhas. As conversas com as católicas motivaram-me para resgatar aquela pergunta há anos reprimida até ficar esquecida no fundo da minha alma: qual é o sentido da vida, neste mundo cheio de injustiça, indiferença e inesperado? Fiquei admirada com alguns valores cristãos, mas resolvi nunca me envolver no Cristianismo, pois não podia deixar de vê-lo como baseado numa lenda. “Quem acredita numa lenda, por muito bonita que seja, engana-se a si”, pensava.

Racional e alerta, o que mantinha aberta era a minha atitude, não o meu coração – aliás, nem sabia que o coração estava longamente fechado e endurecido –, e a sua abertura seria um trabalho que só as mãos de Deus podiam realizar, como mais tarde soube.

Um susto e um clarão

Nos primeiros tempos na residência, eu costumava conversar com a Isabel, uma numerária auxiliar muito querida. Ficava verdadeiramente admirada com a paciência e o bom humor dela, sobretudo quando respondia com toda a calma as minhas perguntas provocativas, que já surgiam não tanto da pura curiosidade que do meu cinismo, rescaldo de uma adolescência rebelde. Às vezes via luz em algumas ideias dela, mas o que passou pela minha cabeça nunca entrou no meu coração.

No Porto, na Foz, num convívio em agosto de 2021

O ponto de virada havia de chegar. Certa altura, eu estava diante de uma grande tentação. Era uma coisa que eu quis muito fazer, mas no fundo da consciência sentia que seria errado avançar. Sentia constantemente uma aflição na alma, comia mal e dormia mal durante vários dias. Ainda não tinha fé, mas comecei automaticamente a rezar a Deus, e a todos os quadros e estátuas dos santos que eu encontrava na casa e nas ruas. De fato, rezar, uma atividade de cariz sobrenatural, é tão natural ao ser humano como um instinto. As pessoas, independentemente de ter ou não religião, rezam consciente ou inconscientemente, sobretudo nos momentos da dificuldade.

Passei assim uns dias angustiada. Finalmente, decidi procurar ajuda. Pensei numa residente brasileira – ainda não a conhecia muito bem, mas sabia que ela era boa moça e confiável. Imaginei que, naquelas circunstâncias, essa pessoa talvez tivesse mais perfil de entender o meu problema. Tinha vergonha de lhe dar a saber da minha situação, mas quando percebi que ela não ia julgar-me, fiquei descansada e contei-lhe tudo. Ela deu-me logo umas sugestões muito simples, mas decisivas, que me salvou imediatamente do transe. Fiquei muito feliz e agradecida, e sentia-me como iluminada pelos princípios dela – pelos princípios católicos, digamos.

“Deus sussurra-nos em nossos prazeres, fala conosco em nossa consciência, grita em nossas dores”, diz C. S. Lewis. Agora, quando olho para trás, vejo esse episódio como o prólogo da minha conversão, embora nessa altura não soubesse que Deus estava por trás dos acontecimentos.

Uma pessoa que me conquistou

Entretanto, as conversas com a Isabel foram aprofundando. A Isabel começou a falar-me do Batismo, mas eu não compreendia e sentia-me constrangida. Ela dizia sempre: “Vou rezar por ti”. Eu mostrava agradecimento por delicadeza, pois mesmo que não soubesse o que era oração para os cristãos, sabia que era uma coisa boa. Contudo, havia também algo nisso que me incomodava. Pensava: “Que gente estranha! É a vossa religião, eu respeito, mas não quero que isto tenha nada a ver comigo. Já fico sabendo que os cristãos são pessoas muito simpáticas e muito felizes, o que eu admiro. Mas eu preciso de raciocinar as coisas usando a minha inteligência em vez de me deixar levar pelas boas sensações. Deus existe, e há só um, isso até sou capaz de aceitar (pensando na antiga filosofia chinesa e nas principais religiões do mundo), mas há tantas outras religiões, porque é que vou ser cristã? Gosto imenso dos cristãos que conheci até agora, mas isso não é razão suficiente para eu própria ser cristã.”

O rebento não saiu logo, mas uma vez que a semente foi deixada, Deus continuaria o Seu trabalho. A grande questão de “ser ou não ser” impelia-me a investigar o Catolicismo, sobretudo na internet. Naturalmente, na internet havia mil e uma opiniões que nem na farmácia, o que acontece com cada coisa na face da terra. Havia críticas e apologéticas, mas nada conquistou o meu raciocínio.

Finalmente, encontrei uma pessoa, que me convenceu completamente.

O nome d'Ele é Jesus.

Um belo dia, das minhas pesquisas saiu um artigo sobre Jesus, muito detalhado. Li-o e fiquei petrificada: primeiro, Jesus é uma figura histórica e não fictícia – não era, como antes sempre tinha pensado, uma personagem de uma lenda. Segundo, a veracidade da ressurreição foi comprovada de várias perspectivas, e nada está contra a razão humana – não era, portanto, a mesma “ressurreição” dos deuses nos mitos gregos.

De repente tive um arrepio: “Se esse homem realmente existiu, e realmente ressuscitou, ele não pode ser um homem comum. É… Deus? É… Deus! É Deus! É Deus!! O próprio Deus veio à terra, foi morto pelos homens e ressuscitou! O que é a vida? O que é a morte? Será que realmente têm os mesmos significados que eu sempre pensava que conhecia?”. Levei, pois, um choque radical.

Nos seguintes dias, submergi-me na meditação desse assunto. Recorri a uns grandes intelectuais da história humana e comparei de modo geral as suas visões, à procura de apoio e de refutação. Não disse a ninguém, porque era uma coisa acima das linguagens. Entretanto, a Isabel não deixava de me mencionar o Batismo. Eu fiquei um pouco chateada, porque precisava do tempo para assimilar as ressacas do choque. Pensei no meu passado, nos erros que tinha cometido, na pessoa que eu era, na parte de mim que estava como alheia de mim.

A minha antiga visão sobre a vida e sobre o mundo estava numa crise, o meu antigo sistema de valores estava a desfazer-se. O meu universo estava a abalar. Instintivamente, eu tentava resistir, tentava proteger o meu castelo interior. No entanto, eu sentia por vezes uma força inefável atacando o meu coração, como algo ou alguém querendo entrar numa casa e bate na porta com uma ansiosa mas suave insistência.

Numa tarde, ouvi uma voz a sussurrar: “Abre o teu coração, abre o teu coração, deixa-me entrar”. De repente, senti quase palpável a minha soberba, coisa que não estava nada à espera, porque me assumia geralmente como uma pessoa boa. Desta vez era diferente: essa soberba que vi não me parecia um defeito em termos morais, mas vinda de uma criatura que se assumia o seu próprio criador e dono. Era uma soberba que não se revela a si, cuja existência só se sabe no momento da sua destruição, o que não depende da vontade ou do esforço do próprio indivíduo, senão de algo maior – quem anda nas trevas não sabe o que é a escuridão, até ver uma luz.

Logo que esbarrei com essa minha soberba, sabendo que era o primeiro e maior obstáculo rumo a um lugar fascinante no alto, ela foi estilhaçada. Senti por dentro um peso a tombar, um nó a ser desfeito, um desentulho, e uma corrente quentinha a começar a fluir. Senti a mudança improvável dum coração de pedra para um coração de carne. Fiquei surpreendida pelo conhecimento de tamanha dureza do meu próprio coração. Vi-me com tanta claridade que como se fosse da perspectiva de uma terceira pessoa, coisa que nunca tinha acontecido. E ao mesmo tempo que senti uma necessidade urgente de ser perdoada pelo mal que tinha feito no passado, senti um perdão absorvente de que não me achei digna. Tremi e desatei chorando.

“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Ressoou na minha cabeça esta frase. A Verdade pela Autoridade, a Vida pela Ressurreição – a isso já lá cheguei com a inteligência, mas o Caminho? Como pode um homem ser um caminho? Naquele instante percebi – ou melhor, vivi e soube, em que sentido esta metáfora aparentemente ilógica não é uma metáfora. “Ninguém vai ao Pai senão por Mim”. O meu coração rendeu-se deslumbrado pela admiração: “Jesus, tu és verdadeiramente o Caminho! Meu Senhor e meu Deus!”.

A partir daí, comecei a interrogar-me a mim: “Queres ser batizada? Queres ser batizada?”. Ficava tensa diante dessa pergunta e não sabia responder, pois ainda não tinha captado o significado do Batismo. Mas cada noite, depois da tertúlia, quando estava sozinha no meu quarto, e cada manhã, quando me preparava para o dia, ouvia uma voz que me dizia: “Sim, tu queres. Sim, tu queres”. Com o passar do tempo, a voz ficou cada vez mais alta, até um dia, ela como se rebentasse, passando da minha cabeça para a minha boca – sozinha no quarto, quase gritei: “Sim, eu quero!” Veio a mim imediatamente uma paz enorme, junto com as lágrimas aos meus olhos.

Batismo, com a Isabel (a Madrinha)

Fui imediatamente à procura da Isabel e pedi-lhe para ser madrinha. Anunciamos a notícia às pessoas da residência e todas ficaram felicíssimas.

Nesta minha história, como em cada história de conversão, há coisas que não se explica com a linguagem humana. Senti vivamente que eu não fui à procura de Deus, mas foi o próprio Deus quem veio ao meu encontro. Mais tarde ouvi esta frase: “O momento da conversão acontece não com uma apologia bem-feita, nem mesmo com a caridade, mas com um encontro pessoal com Jesus”. Como isto é verdade!

“Mais se lhe dará”

Estando longe de casa, falo com os meus pais todos os dias por telefone, sobretudo com a minha mãe, que é a minha melhor amiga. Depois do que teologicamente se denomina “Batismo de desejo”, comecei a ter catequese para receber o Sacramento do Batismo. Naqueles tempos eu ia contando à minha mãe tudo o que eu tinha percebido e, aproveitando o Espírito Santo das nossas conversas, ela não demorou a converter-se. O meu pai ainda não foi inspirado, mas respeita e até admira a nossa fé. Agora, um ano depois do Batismo, com muita formação na sua paróquia e à distância comigo, a minha mãe tornou-se responsável dos catecúmenos, sendo testemunha de vários milagres divinos em almas muito variadas.

Algumas digressões

Depois de conhecer a fé, às vezes lamentava não ter conhecido a Deus mais cedo, ou mesmo não ter nascido numa família cristã. Mas ouvi do Espírito Santo: “Deus quer-te assim, quer encontrar-te deste modo e neste momento, quer abraçar-te aos teus vinte e três anos”. Pensando bem, tendo eu a personalidade que tenho, se não tivesse vivido vinte e três anos sem fé, não via certas coisas do mesmo modo que as vejo agora.

Cada um de nós pode dizer-se o filho preferido de Deus. A uns, Deus dá a graça de nascer no seio de uma família cristã; a outros, Deus faz o milagre de suscitar filhos a Abraão das pedras. Longe de ter pena, gosto de pensar que quem recebe do nada, recebe mais. Deus não me pensou batizada enquanto bebê, porque Ele sabia que a fé para mim em vez de ser como chuvisco que molha a terra aos poucos, havia de ser como uma tempestade impetuosa.

O meu passado talvez fosse por vezes pedregoso, mas agora vejo que não houve nele nenhuma queda que Deus não aproveitaria para me guiar segundo o Seu plano. Se Deus tem um plano para nós, mesmo os caminhos aparentemente errados que percorremos levar-nos-ão ao lugar certo, pois nada neste mundo pode perturbar os passos d'Ele. Por isso, penso que em relação ao apostolado, quando não vemos frutos imediatos, é no plano de Deus e não no nosso trabalho que devemos confiar.

Ao escrever a minha história, revivi aqueles momentos e converti-me mais um bocado. Penso que um dos maiores perigos para cada batizado é ficar acostumado à graça divina – tão grande como o dom da fé, e tão pequena como o pão de cada dia. Nunca se pode enfatizar demasiado a capacidade de se maravilhar com tudo o que Deus coloca na nossa vida. “A conversão é diária”, como diz aquela minha amiga brasileira que uma vez me ajudou.

Espero que este artigo possa ser uma pequena ajuda para o apostolado com os amigos chineses ou outros asiáticos, sobretudo através de um melhor conhecimento das nossas cultura e mentalidade. Por fim, gostaria de lhe pedir oração pela China, uma terra vasta onde estão muitas almas à nossa espera.