Carta do Prelado (9 janeiro de 2018)

São Josemaria dizia aos seus filhos do Opus Dei que a herança que deixaria seria “o amor à liberdade e o bom humor”. Seguindo os seus ensinamentos, o prelado convida nesta carta a agradecer esta herança e refletir sobre o dom da liberdade.

Queridíssimos: que Jesus guarde as minhas filhas e meus filhos!

1. Nos últimos meses, seguindo uma orientação do Congresso geral, muitas vezes me tenho referido à liberdade. Agora, com estas páginas, desejo que nos lembremos de alguns aspectos deste grande dom de Deus, seguindo os ensinamentos de são Josemaria, que em toda a sua vida foi um apaixonado pela liberdade. “Não me cansarei de repetir, meus filhos – escreveu ele numa ocasião –, que uma das mais evidentes características do Opus Dei é o seu amor à liberdade e à compreensão”[1]. Agradeçamos muito a Deus ao reler e meditar suas palavras. Ao mesmo tempo, procuremos examinar, cada uma e cada um, como traduzi-las melhor na nossa vida pessoal, com a graça de Deus. Assim, estaremos também em melhores condições para ajudar a que mais almas possam alcançar “a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rom 8,21),

A paixão pela liberdade, a sua exigência por parte de pessoas e povos, é um sinal positivo do nosso tempo. Reconhecer a liberdade de cada mulher e de cada homem significa reconhecer que são pessoas: donos e responsáveis por seus próprios atos, com a possibilidade de orientar a sua própria existência. Embora a liberdade nem sempre leve a desenvolver o melhor de cada um, nunca poderemos exagerar a sua importância, porque se não fossemos livres, não poderíamos amar.

Mas é uma pena que, em muitos ambientes, exista um grande desconhecimento do que realmente é a liberdade. Frequentemente se pretende uma liberdade ilusória sem limites, como meta final do progresso, embora não raro seja necessário lamentar também muitas formas de opressão e liberdades aparentes que na verdade são correntes que escravizam. Uma liberdade que, mais cedo ou mais tarde, revela-se vazia. “Alguns acreditam que são livres – escreve o Papa –, quando caminham à margem de Deus, sem perceber que permanecem existencialmente órfãos, indefesos, sem um lar para onde sempre retornar. Deixam de ser peregrinos e se tornam errantes”[2].

Chamados à liberdade

2. Fomos “chamados à liberdade” (Gl 5,13). A própria Criação é uma manifestação da liberdade divina. Os relatos do Gênesis deixam entrever o amor criador de Deus, a sua alegria por comunicar ao mundo a sua bondade, a sua beleza (Gn 1,31), e ao homem a sua liberdade (cf. Gn 1,26-29). Ao chamar cada um de nós à existência, Deus nos fez capazes de escolher e querer o bem, e de corresponder com amor ao seu Amor. No entanto, a nossa limitação como criaturas também torna possível afastar-nos de Deus. “É um mistério da Sabedoria divina que, ao criar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26), Ele tenha desejado assumir o risco sublime da liberdade humana”[3].

Esse risco, desde o início da história, conduziu efetivamente à rejeição do Amor de Deus pelo pecado original. Assim, a força da liberdade humana ficou enfraquecida para o bem, e a vontade ficou um tanto inclinada para o pecado. Depois, os pecados pessoais enfraquecem ainda mais a liberdade, e é por isso que o pecado sempre implica, em maior ou menor grau, uma escravidão (cf. Rm 6,17.20). No entanto, “o homem continua sendo sempre livre”[4]. Embora “a sua liberdade também seja sempre frágil”[5], continua a ser um bem essencial de cada pessoa humana, e deve ser protegida. Deus é o primeiro a respeitá-la e amá-la, porque “Ele não quer escravos, mas filhos”[6].

3. “Onde, porém, abundou o pecado, superabundou a graça.” (Rm 5, 20). Com a graça, surge uma nova e superior liberdade para a qual “Cristo nos libertou” (Gl 5,1). O Senhor nos livra do pecado por meio das suas palavras e obras: todas têm eficácia redentora. É por isso que “sobre todos os mistérios da nossa fé católica adeja esse canto à liberdade”[7]. Frequentemente lembro a vocês a necessidade de Jesus Cristo estar no centro de nossa vida. Para descobrir o sentido mais profundo da liberdade, devemos contemplá-Lo. Ficamos maravilhados com a liberdade de um Deus que, por puro amor, decide aniquilar-se assumindo carne como a nossa. Uma liberdade que se vai manifestando diante de nós, em sua passagem pela terra, até o sacrifício da Cruz: “Eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, pois eu a entrego livremente (Jo 10,17-18)”. Não houve na história da humanidade um ato tão profundamente livre como a entrega do Senhor na Cruz: Ele “entrega-se à morte com a plena liberdade do Amor”[8].

O Evangelho de São João narra um diálogo do Senhor com alguns que acreditaram n’Ele. Uma promessa ressoa com força entre as palavras de Jesus: “Veritas liberabit vos, a verdade vos fará livres” (Jo 8,32). “Que verdade é esta – perguntava-se São Josemaria –, que inicia e leva a termo o caminho da liberdade ao longo de nossas vidas? Vou resumi-la com a alegria e a certeza que provêm da relação entre Deus e suas criaturas: saber que saímos das mãos de Deus, que somos o objeto da predileção da Santíssima Trindade, que somos filhos de um grande Pai. Peço ao meu Senhor que nos decidamos a perceber isso, a saboreá-lo dia a dia: dessa forma, agiremos como pessoas livres”[9].

4. A nossa filiação divina faz com que a nossa liberdade possa se expandir com toda a força que Deus lhe conferiu. Não é emancipando-nos da casa do Pai que somos livres, mas abraçando a nossa condição de filhos. “Aquele que não se sabe filho de Deus, desconhece a sua verdade mais íntima”[10]: vive de costas para si mesmo, em conflito consigo mesmo. Por isso, como é libertador saber que Deus nos ama! Como é libertador o perdão de Deus, que nos permite voltar a nós mesmos e ao nosso verdadeiro lar (cf. Lc 15, 17-24)! Ao perdoar os outros, enfim, também experimentamos essa libertação.

A fé no amor que Deus tem por cada uma e cada um (1 Jo 4,16) leva-nos a corresponder por amor. Nós podemos amar porque Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo 4,10). Sabermos que o infinito Amor de Deus é encontrado não só na origem de nossa existência, mas também em cada instante, porque Ele é mais íntimo para nós do que nós mesmos[11], enche-nos de segurança. Saber que Deus nos espera em cada pessoa (cfr. Mt 25,40), e que quer fazer-se presente em suas vidas também através de nós, leva-nos a procurar dar a mancheias tudo o que recebemos. E em nossa vida, minhas filhas e filhos, recebemos e continuamos a receber muito amor. Dar isso a Deus e aos outros é o ato mais próprio da liberdade. O amor realiza a liberdade, redime-a: faz com que ela encontre a sua origem e seu fim no Amor de Deus. “A liberdade adquire o seu sentido autêntico quando é exercida em serviço da verdade que resgata, quando a gastamos em proclamar o Amor infinito de Deus, que nos desata de todas as escravidões”[12].

O sentido da filiação divina leva, portanto, a uma grande liberdade interior, a uma alegria profunda e ao otimismo sereno da esperança: spe gaudentes (Rom 12,12). Saber-nos filhos de Deus também nos leva a amar o mundo, que saiu bom das mãos de nosso Pai Deus, e a enfrentar a vida com a consciência clara de que se pode fazer o bem, vencer o pecado e levar o mundo a Deus. O Papa Francisco expressou essa ideia contemplando nossa Mãe: “De Maria, cheia de graça, aprendemos que a liberdade cristã é algo mais do que a simples libertação do pecado. É a liberdade que nos permite ver as realidades terrenas com uma nova luz espiritual, a liberdade de amar a Deus e nossos irmãos com um coração puro e viver na alegre esperança da vinda do Reino de Cristo”[13].

Liberdade de espírito

5. Agir livremente, sem coerção de nenhum tipo, é característico da dignidade humana e, mais ainda, da dignidade das filhas e dos filhos de Deus. Ao mesmo tempo, é necessário “fortalecer o apreço por uma liberdade não arbitrária, mas verdadeiramente humanizada pelo reconhecimento do bem que a precede”[14]: uma liberdade reconciliada com Deus.

Por essa razão, gostaria de me deter a considerar a importância da liberdade de espírito. Não me refiro ao sentido ambíguo, que às vezes também é dado a esta expressão: agir de acordo com os nossos próprios caprichos e em atitude de resistência a qualquer regra. Na realidade, a liberdade de todas as pessoas humanas é materialmente limitada por deveres naturais e compromissos adquiridos (familiares, profissionais, cívicos etc.). No entanto, podemos agir livremente em tudo, se o fizermos por amor: “Dilige et quod vis fac: Ama e faz o que quiseres”[15]. A verdadeira liberdade de espírito é essa capacidade e atitude habitual de agir por amor, especialmente no esforço de seguir o que, em cada circunstância, Deus pede a cada um.

“Amas-me?” (Jo 21,17): a vida cristã é uma resposta livre, cheia de iniciativa e disponibilidade, a esta pergunta do Senhor. Portanto, “nada mais falso do que opor a liberdade à entrega de si, porque essa entrega surge como consequência da liberdade. Reparemos: quando uma mãe se sacrifica por amor aos seus filhos, fez uma opção; e, conforme for a medida desse amor, assim se manifestará a sua liberdade. Se esse amor for grande, a liberdade se mostrará fecunda, e o bem dos filhos procederá dessa bendita liberdade, que implica entrega, e procederá dessa bendita entrega, que é precisamente liberdade”[16].

Neste horizonte entende-se que encorajar a liberdade de cada um não equivale a diminuir a exigência. Quanto mais livres somos, mais podemos amar. E o amor é exigente: “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor 13, 7). Por sua vez, crescer no amor é crescer em liberdade, ser mais livre. Nas palavras de São Tomás de Aquino: “Quanto aliquis plus habet de caritate, plus habet de libertate[17]. Quanto mais intensa for nossa caridade, mais livres seremos. Nós também agimos com liberdade de espírito quando não sentimos vontade de fazer algo ou achamos aquilo especialmente custoso, se o fazemos por amor, ou seja, não porque gostamos, mas porque queremos mesmo “Devemos sentir-nos filhos de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do nosso Pai, de realizar tudo segundo o querer de Deus, simplesmente porque queremos mesmo, que é a razão mais sobrenatural”.[18]

6. A alegria também é uma manifestação da liberdade de espírito. “No terreno humano – nos diz São Josemaria –, quero deixar-vos em herança o amor à liberdade e o bom humor”[19]. São duas realidades que parecem muito diferentes, mas que estão conectadas, porque saber-nos livres para amar leva-nos a experimentar a alegria na alma e com ela o bom humor: um olhar para o mundo que, além do simples caráter natural, nos permite ver o lado positivo – e, em alguns casos, divertido – das coisas e das situações. Como diz o Papa Francisco, Deus “é o autor da alegria, o Criador da alegria. E esta alegria no Espírito nos dá a verdadeira liberdade cristã. Sem alegria, os cristãos não podemos ser livres: tornamo-nos escravos das nossas tristezas”[20].

Essa alegria é chamada a invadir tudo na nossa vida. Deus nos quer contentes. Ao falar aos Apóstolos, Jesus também nos fala a nós: “Que a minha alegria esteja em vós e que a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11). É por isso que podemos cumprir com alegria também os deveres que podem ser desagradáveis. Como nos diz São Josemaria, “não é legítimo pensar que só é possível fazer com alegria o trabalho de que gostamos”[21]. Pode ser feito com alegria – e não de má vontade – aquilo que custa, aquilo de que não gostamos, se for feito por e com amor e, portanto, livremente. Fazendo sua oração em voz alta, em 28 de abril de 1963, São Josemaria explicou as luzes que havia recebido no distante ano de 1931: “Tu fizeste, Senhor, que eu entendesse que ter a Cruz é encontrar a felicidade, a alegria. E a razão – vejo-o com mais clareza do que nunca – é esta: ter a Cruz é identificar-se com Cristo, é ser Cristo e, por isso, ser filho de Deus”[22].

7. Toda a lei divina, e tudo o que é vontade de Deus para cada um, não é uma lei que oprima a liberdade. Pelo contrário, é lex perfecta libertatis (cf. Tg,1,25): a lei perfeita de liberdade, como o próprio Evangelho, porque toda ela está resumida na lei do amor, e não apenas como uma norma externa que manda amar, mas ao mesmo tempo como graça interior que nos dá a força para amar. “Pondus meum amor meus": meu amor é o meu peso, dizia Santo Agostinho[23], referindo-se, não ao fato óbvio de que às vezes amar é custoso, mas à realidade de que o amor que levamos no coração é o que nos move, o que nos leva a toda a parte. “Eo feror, quocumque feror", aonde quer que eu vá, é ele quem me leva[24]. Pensemos, cada uma e cada um, qual é o amor que me leva a toda a parte?

Quem deixa que o Amor de Deus tome conta do seu coração experimenta pessoalmente até que ponto “a liberdade e a entrega não se contradizem; elas se apoiam mutuamente. Só por amor se pode entregar a liberdade. Não concebo outro tipo de desprendimento. Não é um jogo de palavras, mais ou menos acertado. Na entrega voluntária, em cada momento dessa dedicação, a liberdade renova o amor, e renovar-se é ser continuamente jovem, generoso, capaz de grandes ideais e de grandes sacrifícios”[25]. Deste modo, a obediência a Deus, portanto, não é apenas um ato livre, mas também um ato libertador.

“Eu tenho um alimento que vós não conheceis”, diz Jesus a seus discípulos: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra” (Jo 4, 32-34). Para Jesus, obedecer ao Pai é alimento: o que lhe dá força. E também para nós: ser um discípulo de Jesus, como explicava São João Paulo II, consiste em “aderir à própria pessoa de Jesus, compartilhar a sua vida e o seu destino, participar da sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai”[26].

Bento XVI aprofunda nessa íntima relação entre liberdade e entrega: “Em sua obediência ao Pai, Jesus realiza a sua liberdade como uma escolha consciente motivada pelo amor. Quem é mais livre do que Ele, que é o Todo-Poderoso? Mas Ele não viveu a sua liberdade como arbítrio ou domínio. Ele a viveu como um serviço. Desta forma, ele “encheu" a liberdade de conteúdo, que, de outra forma, seria apenas a possibilidade "vazia" de fazer ou não fazer alguma coisa. A liberdade, como a própria vida do homem, ganha sentido através do amor. (...) Portanto, a liberdade cristã não é de forma alguma arbitrariedade. É o seguimento de Cristo na entrega de si até o sacrifício da cruz. Pode parecer um paradoxo, mas o Senhor viveu o auge de sua liberdade na cruz, como cume do amor. Quando gritavam no Calvário dirigindo-se a Ele: "Se és o Filho de Deus, desce da cruz", Ele demonstrou a sua liberdade de Filho precisamente ao permanecer nesse patíbulo para cumprir em profundidade a vontade misericordiosa do Pai”[27].

“Tu me seduziste, Senhor; e eu me deixei seduzir! Foste mais forte do que eu e me subjugaste!” (Jr 20, 7). Que amplidão de sentimentos se reflete nesta oração do profeta Jeremias! Perceber a própria vocação como um dom de Deus – e não como uma simples teia de obrigações –, mesmo quando sofremos, é também uma manifestação de liberdade de espírito. Como é libertador saber que Deus nos ama como somos, e nos chama, em primeiro lugar, a deixarmos que Ele nos ame.

8. A liberdade de espírito também significa não nos amarrarmos a obrigações que não existem; saber prescindir e mudar com flexibilidade muitos detalhes da vida que dependem da nossa livre iniciativa pessoal. Como dom Javier nos escreveu há vinte anos, “há, é claro, ações devidas e outras que não o são em sua materialidade concreta. Mas tanto nas primeiras como através das segundas devemos procurar livre e responsavelmente o cumprimento do mandamento supremo do amor a Deus: assim somos livres e obedientes ao mesmo tempo e a qualquer momento”[28].

Devemos manter sempre na Obra o ambiente de confiança e de liberdade que facilita manifestar a quem corresponda o que nos preocupa, comentar o que não compreendemos ou o que nos parece que deveria melhorar. Ao mesmo tempo, esse clima de confiança também é alimentado pela lealdade e paciência para lidar, com serenidade e bom humor, com limitações humanas, situações que nos contrariem etc. Essa é a atitude de um bom filho, que, no exercício de sua liberdade, protege bens maiores do que o seu próprio ponto de vista, mesmo que esteja convencido de que tem razão: bens como a unidade e a paz familiar, que não têm preço. Pelo contrário, “quando nossas ideias nos separam dos outros, quando nos levam a romper a comunhão, a unidade com nossos irmãos, é um sinal claro de que não estamos trabalhando de acordo com o espírito de Deus”[29].

9. Embora às vezes algumas situações possam fazer-nos sofrer, Deus se serve delas com frequência para nos identificar com Jesus. Como a Carta aos Hebreus diz, Ele “aprendeu a obediência através do sofrimento” (Hb 5,8) e trouxe a “salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (5,9): Ele nos trouxe a liberdade dos filhos de Deus. Aceitar as limitações humanas que todos temos, sem renunciar a superá-las tanto quanto possível, também é manifestação e fonte de liberdade de espírito. Pensem, por contraste, na triste atitude do filho mais velho da parábola (Lc 15, 25-30): como lança em rosto a seu pai e diz tantas coisas que manteve guardadas na sua alma com amargura e não é capaz de se juntar à alegria familiar. A sua liberdade foi ficando pequena e egoísta, incapaz de amar, de entender que “tudo o que é meu é teu” (Lc 15,31). Ele morava em sua casa, mas não era livre, porque seu coração estava fora.

Que bela é, por contraste, a história de Ruth, a moabita, na qual a liberdade e a entrega arraigam em um profundo sentido de pertença à família. É comovente ver como esta mulher responde à insistência de sua sogra, que a encorajou a reconstruir a sua vida voltando para a sua terra: “Não insistas comigo para eu te abandonar e deixar a tua companhia. Para onde fores, eu irei, e onde quer que passes a noite, pernoitarei contigo. O teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus, onde quer que venhas a morrer aí eu quero morrer e aí quero ser sepultada” (Rt 1, 16-17).

Por fim, ao contemplar a Santíssima Virgem, torna-se ainda mais claro como a liberdade se manifesta na entrega fiel. “Consideremos agora o momento sublime em que o Arcanjo São Gabriel anuncia a Santa Maria o desígnio do Altíssimo. A nossa Mãe escuta, e a seguir pergunta, para compreender melhor o que o Senhor lhe pede; depois vem a resposta firme: Fiat! (Lc 1,38) – faça-se em mim segundo a tua palavra! –, o fruto da melhor liberdade: a de decidir-se por Deus”[30].

Formar e governar pessoas livres

10. Na formação, a direção espiritual pessoal tem um papel importante, e sempre deve se desenvolver em um clima de liberdade, e orientar-se a formar pessoas que se sintam “livres como pássaros”[31]. Nesse sentido, São Josemaria escreve, referindo-se a quem recebe as conversas pessoais de seus irmãos, que “a autoridade do diretor espiritual não é potestade. Deixem sempre uma grande liberdade de espírito às almas. Pensem no que tantas vezes lhes disse: porque quero realmente, me parece a razão mais sobrenatural de todas. A função do diretor espiritual é ajudar a que a alma queira – a que queira mesmo – cumprir a vontade de Deus. Não mandem, aconselhem”[32]. Com os conselhos da direção espiritual, procura-se secundar a ação do Espírito Santo em cada alma e ajudá-la a situar-se diante de Deus e diante de seus próprios deveres com liberdade e responsabilidade pessoais porque, “ao criar as almas, Deus não se repete. Cada um é como é, e cada um deve ser tratado como Deus o fez e como Deus o conduz”[33].

Junto ao conselho, normalmente poderá vir a carinhosa exortação que facilita a convicção de que sempre vale a pena se esforçar para ser fiel por amor, livremente. Também na direção espiritual, se pode dar algumas vezes – com clareza, mas sempre com carinho e delicadeza – um “conselho imperativo”, que lembre da obrigação de cumprir um dever. A força desse conselho, no entanto, não viria do conselho em si, mas desse dever. Quando há confiança, pode-se e deve-se falar assim, e quem recebe essa advertência a agradece, porque reconhece nesse gesto a fortaleza e o carinho de um irmão mais velho.

11. A formação, ao longo de toda a vida, sem negligenciar a exigência necessária, tende, em uma medida importante, a abrir horizontes. Pelo contrário, se nos limitássemos a exigir e a ser exigidos, poderíamos acabar vendo apenas o que não conseguimos fazer, os nossos defeitos e limitações, esquecendo o mais importante: o amor de Deus por nós.

Nesse mesmo contexto, lembremos que, como São Josemaria nos ensinou, “na Obra, somos muito amigos da liberdade, e também o somos na vida interior: não nos apegamos a esquemas ou métodos (...). Há muito – deve haver muito – de autodeterminação inclusive na vida espiritual”[34]. Por isso, a sinceridade na direção espiritual, que nos leva a abrir livremente a alma para receber aconselhamento, leva-nos também à iniciativa pessoal, a manifestar com liberdade o que vemos como pontos possíveis para a nossa luta interior por identificar-nos cada vez mais com Jesus Cristo.

Por esta razão, a formação, transmitindo o mesmo espírito a todos, não produz uniformidade, mas unidade. De forma expressiva, São Josemaria dizia que, na Obra “pode-se percorrer o caminho de muitas maneiras. Pode-se caminhar à direita, à esquerda, em ziguezague, andando a pé ou a cavalo. Há cem mil maneiras de seguir o caminho divino: de acordo com as circunstâncias, será obrigatório para cada um seguir um ou outro desses procedimentos, porque é o que a sua consciência lhe impõe. A única coisa necessária é não sair do caminho”[35]. O espírito da Obra, tal como o Evangelho, não se sobrepõe ao nosso ser, mas o vivifica: é uma semente destinada a crescer na terra de cada um.

12. Na formação, também é importante evitar que um desejo excessivo de segurança ou de proteção encolha a nossa alma, nos diminua. “Os que encontraram Cristo não podem fechar-se no seu ambiente: triste coisa seria esse empequenecimento! Têm que abrir-se em leque para chegar a todas as almas”[36]. Como é importante, então, ser formados na necessidade de viver sem medo de errar, sem medo de não estar à altura, sem medo de um ambiente adverso; e, com visão sobrenatural, envolver-nos – com prudência e decisão – em nosso ambiente social e profissional.

O amor à liberdade também se manifesta, portanto, na espontaneidade e iniciativa no apostolado, que se harmoniza com os encargos apostólicos concretos. É importante termos sempre em mente que “o nosso apostolado é acima de tudo um apostolado pessoal”.[37] O mesmo se aplica à promoção das atividades apostólicas por parte dos diretores: “Nunca quis amarrá-los, pelo contrário, tenho procurado que vocês agissem com uma grande liberdade. Na sua ação apostólica, devem ter iniciativa, dentro da amplíssima margem que delineia o nosso espírito, para assim encontrar – em cada lugar, em cada ambiente e em cada tempo – as atividades que melhor se adaptem às circunstâncias”[38].

13. Outra manifestação importante do amor à liberdade está presente no governo pastoral, que corresponde ao Prelado e seus Vigários, com a ajuda de seus Conselhos correspondentes. Meditemos, mais uma vez, com gratidão, estas palavras de São Josemaria: “Como uma consequência desse espírito de liberdade, a formação – e o governo – na Obra se baseia na confiança (...). Nada se consegue com um governo fundado na desconfiança. Pelo contrário, é fecundo mandar e formar com respeito pelas almas, desenvolvendo nelas a verdadeira e santa liberdade dos filhos de Deus, ensinando-as a administrar sua própria liberdade. Formar e governar é amar”[39].

Mandar com respeito às almas é, em primeiro lugar, respeitar delicadamente a interioridade das consciências, sem confundir o governo com a direção espiritual. Em segundo lugar, esse respeito leva a distinguir os mandatos daquilo que são apenas exortações, conselhos ou sugestões oportunas. E, em terceiro lugar – mas nem por isso menos importante – é governar com tanta confiança nos outros, que se conte sempre, na medida do possível, com a opinião das pessoas interessadas. Essa atitude daqueles que governam, a sua disposição de escutar, é uma manifestação maravilhosa de que a Obra é família.

Também temos uma grata experiência da plena liberdade que existe no Opus Dei nas questões econômicas, políticas, teológicas opináveis etc. “No que não é de fé, cada um pensa e age como quer, com a mais completa liberdade e responsabilidade pessoal. E o pluralismo que, lógica e sociologicamente, deriva desse fato, não constitui nenhum problema para a Obra: mais ainda, esse pluralismo é uma manifestação do bom espírito”[40]. Esse pluralismo deve ser amado e promovido, ainda que às vezes a diversidade possa ser custosa para alguém. Quem ama a liberdade consegue ver o que há de positivo e amável naquilo que os outros pensam e fazem dentro desses amplos âmbitos da livre opinião.

No que diz respeito ao modo de realizar o governo, São Josemaria estabeleceu e sempre recordou com força a colegialidade, que é outra manifestação desse espírito de liberdade que impregna a vida no Opus Dei: “tenho-lhes repetido em inúmeras circunstâncias, e vou repeti-lo muito mais ao longo da minha vida, que exijo na Obra, em todos os níveis, um governo colegial: para que não se caia na tirania. É uma manifestação de prudência, porque, com o governo colegial, estudam-se mais facilmente os assuntos, corrigem-se melhor os erros, aperfeiçoam-se com maior eficácia as tarefas apostólicas que já caminham bem”[41].

A colegialidade não é apenas ou principalmente um método ou sistema de funcionamento para a tomada de decisões. É, acima de tudo, um espírito enraizado na convicção de que todos nós podemos e precisamos receber dos outros luzes, dados etc., que nos ajudem a melhorar e até mesmo a mudar a nossa opinião. Ao mesmo tempo, isso traz consigo precisamente o respeito – mais ainda, a positiva promoção – da liberdade dos que nos rodeiam, para que eles possam expressar sem dificuldade alguma, os seus pontos de vista.

Respeito e defesa da liberdade no apostolado

14. O apostolado tem a sua origem no sincero desejo de facilitar aos outros o encontro com Jesus Cristo ou uma maior intimidade com Ele. "Nossa atitude – diante das almas – é assim resumida nesta expressão do Apóstolo, que é quase um grito: caritas mea cum omnibus vobis in Christo Iesu! (1 Cor 16,24): meu carinho por todos vocês, em Cristo Jesus. Com a caridade, vocês serão semeadores de paz e alegria no mundo, amando e defendendo a liberdade pessoal das almas, a liberdade que Cristo respeita e ganhou para nós (cf. Gl 4,31)”[42].

Amamos, em primeiro lugar, a liberdade das pessoas que ajudamos a se aproximarem do Senhor, no apostolado de amizade e confidência, que São Josemaria nos convida a realizar com o testemunho e a palavra. “Também na ação apostólica – melhor: principalmente na ação apostólica –, queremos que não haja nem o menor sinal de coação. Deus quer ser servido em liberdade e, portanto, um apostolado que não respeitasse a liberdade das consciências não seria reto”.[43]

A verdadeira amizade implica um sincero carinho mútuo, que é a verdadeira proteção da liberdade e da intimidade recíprocas. O apostolado não funciona como algo sobreposto à amizade, porque – como já lhes escrevi – “não fazemos apostolado, somos apóstolos! ”[44]: a própria amizade é apostolado. A própria amizade é um diálogo, em que damos e recebemos luz; em que surgem projetos, numa mútua abertura de horizontes, em que nos alegramos pelo que é bom e nos apoiamos no que é difícil: em que passamos bons momentos porque Deus nos quer contentes.

15. Como vocês sabem, o proselitismo, entendido no seu sentido original, é uma realidade positiva, equivalente à atividade missionária de difusão do Evangelho[45]. É assim que são Josemaria sempre o entendeu, e não no sentido negativo que esse termo adquiriu nos últimos tempos. No entanto, é necessário ter em mente que, diversamente do que desejaríamos, às vezes as palavras adquirem conotações diferentes das que tinham na sua origem. Portanto, dependendo do contexto, calibrem a oportunidade de usar esse termo, porque às vezes os seus interlocutores podem entender algo diferente do que vocês querem dizer.

O respeito e a defesa da liberdade de todos também se manifestam – mais ainda, se possível – ao propormos a uma pessoa a possibilidade do chamado de Deus para a Obra. Liberdade para que se aconselhe com quem desejar e, acima de tudo, liberdade total no discernimento de sua possível vocação e na consequente decisão. São Josemaria, comentando sobre um termo forte do Evangelho, o compelle intrare – obriga a entrar – da parábola (Lc 14,23), escreve: “Como o respeito pela liberdade pessoal de todos é característica capital do nosso espírito, o compelle intrare, que vocês devem viver no proselitismo, não é como um empurrão material, mas sim a abundância de luz, de doutrina; é o estímulo espiritual de sua oração e de seu trabalho, que é testemunho autêntico da doutrina; é o conjunto de sacrifícios, que vocês sabem oferecer; o sorriso que vem à sua boca, porque vocês são filhos de Deus: filiação, que os enche de uma felicidade serena – embora na sua vida, às vezes, não faltem contradições –, que outros veem e invejam. Acrescentem a tudo isso a sua delicadeza e a sua simpatia humana, e teremos o conteúdo do compelle intrere”[46]. Como é claro, assim, para nós que a Obra cresce e deve crescer sempre em um clima de liberdade, apresentando – com decisão e com simplicidade – a beleza deslumbrante de viver com Deus.

* * *

16. Veritas liberabit vos (Jo 8,32). Todas as promessas de libertação que se sucedem ao longo dos séculos são verdadeiras na medida em que são alimentadas pela Verdade sobre Deus e sobre o homem; a Verdade, que é uma Pessoa: Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 4,6). “Também hoje, depois de dois mil anos, Cristo nos aparece como Aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem de tudo aquilo que o limita, que diminui e quase destrói esta liberdade em suas próprias raízes, na alma do homem, em seu coração, em sua consciência”[47].

Deus nos deu a liberdade para sempre: este dom não é algo temporário, para exercitar apenas durante esta vida na terra. A liberdade, como o amor, "nunca acaba" (1 Cor 13,8): permanece no Céu. O nosso caminho até lá é precisamente um caminho rumo a liberdade gloriosa dos filhos de Deus: in libertatem gloriæ filiorum Dei (Rom 8,21). No Céu, a liberdade não só não desaparecerá, como alcançará a sua plenitude: a de abraçar o Amor de Deus. “ Um grande Amor te espera no Céu: sem traições, sem enganos: todo o amor, toda a beleza, toda a grandeza, toda a ciência...! E sem enjoar: saciar-te-á sem saciar”[48]. Se formos fiéis, pela misericórdia de Deus, no Céu seremos plenamente livres, pela plenitude do amor.

Com todo carinho vos abençoa

o vosso Padre,

Roma, 9 de janeiro de 2018, aniversário do nascimento de são Josemaria.


[1] São Josemaria, Carta 31-V-1954, n.22, Citado em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, tomo III, Quadrante, São Paulo, 2004, p. 475

[2] Francisco. Ex. Ap. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n.170.

[3] São Josemaria, Carta 24-X-1965, n.3

[4] Bento XVI, Enc. Spe salvi 30-XI-2007, n.24.

[5] Ibid.

[6] São Josemaria, É Cristo que passa, n.129.

[7] São Josemaria, Amigos de Deus, n.25.

[8] São Josemaria, Via Sacra, X estação.

[9] Amigos de Deus, n. 26

[10] Ibid.

[11] Cfr. Santo Agostinho, Confissões, III, 6,11.

[12] Amigos de Dios, n. 27.

[13] Francisco, Homilia, 15-VIII-2014.

[14] Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 29-VI-2009, n.68.

[15] Santo Agostinho, In Epist Ioan.ad Parthos, VII,8.

[16] Amigos de Deus, n. 30

[17] São Tomás de Aquino, In III Sent., d.29, q.un., a. 8, qla. 3 s.c.1.

[18] É Cristo que passa, n.17

[19] São Josemaria, Carta 31-V-1954, n.22, Citado em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, tomo III, Quadrante, São Paulo, 2004, p. 475.

[20] Francisco, Homilía, 31-V-2013.

[21] São Josemaria, Carta 29-XII-1947, n.106.

[22] São Josemaria, anotações de uma meditação, 28-IV-1963, Citado em P. Urbano, O Homem de Villa Tevere, Quadrante, São Paulo.

[23] Santo Agostinho, Confissões, XIII, 9, 10.

[24] Ibid.

[25] Amigos de Deus, n.31.

[26] São João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, 6-VIII-1993, n.19

[27] Bento XVI, Discurso no Angelis, 1-VII-2007.

[28] Javier Echevarría, Carta pastoral, 14-II-1997, n. 15

[29] É Cristo que passa, n. 17.

[30] Amigos de Deus, n.25

[31] São Josemaria, Carta 14-IX-1951, n.38

[32] São Josemaria, Carta 8-VIII-1956, n. 38

[33] Ibid.

[34] São Josemaria, Carta 29-IX-1957, n. 70.

[35] São Josemaria, Carta 2-II-1945, n. 19.

[36] São Josemaria, Sulco, n.193.

[37] São Josemaria, Carta 2-X-1939, n. 10.

[38] São Josemaria, Carta 24-X-1942, n. 46.

[39] São Josemaria, Carta 6-V-1945, n. 39.

[40] São Josemaria, Entrevistas, n. 98.

[41] São Josemaria, Carta 24-XII-1951, n. 5, Citado em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, tomo III, Quadrante, São Paulo, 2004, p. 268.

[42] São Josemaria, Carta 16-VII-1933, n. 3

[43] São Josemaria, Carta 9-I-1932, n.66

[44] Carta pastoral, 14-II- 2017, n. 9.

[45] Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal acerca de alguns aspectos da evangelização, 3-XII-2007, n. 12 y nota 49.

[46] São Josemaria, Carta, 24-X-1942, n. 9

[47] São João Paulo II, Enc. Redemptor hominis, 4-III-1979, n.12

[48] São Josemaria, Forja, n. 995.


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