Papa Francisco nos EUA

Reunimos os discursos e homilia do Santo Padre em sua viagem apostólica aos EUA.

Santa Missa conclusiva do VIII Encontro Mundial das Famílias - Parque B. Franklin em Filadélfia

Hoje, a Palavra de Deus surpreende-nos com uma linguagem alegórica forte, que nos faz pensar; imagens vigorosas, que questionam as nossas reflexões. Uma linguagem alegórica que nos interpela, mas que anima o nosso entusiasmo.

Na primeira Leitura, Josué diz a Moisés que dois membros do povo estão a profetizar, anunciando a palavra de Deus sem qualquer mandato. No Evangelho, João diz a Jesus que os discípulos impediram uma pessoa de expulsar os espíritos malignos em nome d’Ele. E aqui aparece a surpresa: Moisés e Jesus censuram estes colaboradores por serem de mente tão fechada. Oxalá fossem todos profetas da Palavra de Deus! Oxalá cada um fosse capaz de fazer milagres em nome do Senhor!

Por sua vez, Jesus encontra hostilidade nas pessoas que não aceitaram aquilo que fazia e dizia. Para elas, a abertura de Jesus à fé honesta e sincera de muitas pessoas, que não faziam parte do povo eleito de Deus, parecia intolerável. Entretanto os discípulos estavam a agir em boa-fé; mas a tentação de serem escandalizados pela liberdade de Deus, que faz chover tanto sobre os justos como sobre os injustos (cf. Mt 5, 45), ultrapassando a burocracia, o oficial e os círculos restritos, ameaça a autenticidade da fé e, por isso, deve ser vigorosamente rejeitada.

Quando nos damos conta disto, podemos entender por que motivo as palavras de Jesus sobre o escândalo são tão duras. Para Jesus, o escândalo intolerável é tudo aquilo que destrói e corrompe a nossa confiança no modo de agir do Espírito.

Deus, nosso Pai, não Se deixa vencer em generosidade, e semeia. Semeia a sua presença no nosso mundo, porque «é nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou» primeiro (1 Jo 4, 10). Aquele amor dá-nos esta certeza profunda: somos procurados por Ele, Ele está à nossa espera. É esta confiança que leva o discípulo a estimular, acompanhar e fazer crescer todas as boas iniciativas que existem ao seu redor. Deus quer que todos os seus filhos tomem parte na festa do Evangelho. Não ponhais obstáculo ao que é bom – diz Jesus –, antes pelo contrário, ajudai-o a crescer. Pôr em dúvida a obra do Espírito, dar a impressão de que a mesma não tem nada a ver com aqueles que não são «do nosso grupo», que não são «como nós», é uma tentação perigosa. Não só bloqueia a conversão à fé, mas constitui uma perversão da fé.

A fé abre a «janela» à presença operante do Espírito e demonstra-nos que a santidade, tal como a felicidade, está sempre ligada aos pequenos gestos. «Seja quem for que vos der a beber um copo de água – um pequeno gesto – por serdes de Cristo, (...) não perderá a sua recompensa», diz Jesus (Mc 9, 41). São gestos mínimos, que uma pessoa aprende em casa; gestos de família que se perdem no anonimato da vida diária, mas que fazem cada dia diferente do outro. São gestos de mãe, de avó, de pai, de avô, de filho, de irmãos. São gestos de ternura, de afecto, de compaixão. Gestos como o prato quente de quem espera para jantar, como o café da manhã de quem sabe acompanhar o levantar na alvorada. São gestos familiares. É a bênção antes de dormir, e o abraço ao regressar duma jornada de trabalho. O amor exprime-se em pequenas coisas, na atenção aos detalhes de cada dia que fazem com que a vida sempre tenha sabor de casa. A fé cresce, quando é vivida e plasmada pelo amor. Por isso, as nossas famílias, as nossas casas são autênticas igrejas domésticas: são o lugar ideal onde a fé se torna vida e a vida cresce na fé.

Jesus convida-nos a não obstaculizar estes pequenos gestos miraculosos; antes, quer que os provoquemos, que os façamos crescer, que acompanhemos a vida como ela se nos apresenta, ajudando a suscitar todos os pequenos gestos de amor, sinais da sua presença viva e operante no nosso mundo.

Este comportamento a que somos convidados leva-nos a perguntar, hoje, aqui no final desta festa: Como estamos a trabalhar para viver esta lógica nas nossas famílias e nas nossas sociedades? Que tipo de mundo queremos deixar aos nossos filhos (cf.Laudato si’, 160)? Não podemos responder, sozinhos, a estas perguntas. É o Espírito que nos chama e desafia a responder a elas com a grande família humana. A nossa casa comum não pode mais tolerar divisões estéreis. O desafio urgente de proteger a nossa casa inclui o esforço de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, porque sabemos que as coisas podem mudar (cf. ibid., 13). Que os nossos filhos encontrem em nós pontos de referência para a comunhão, não para a divisão! Que os nossos filhos encontrem em nós pessoas capazes de se associarem com outras para fazer florir todo o bem que o Pai semeou.

Sem meias palavras mas com afecto, Jesus diz-nos: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem?» (Lc 11, 13). Quanta sabedoria há nestas palavras! De facto nós, seres humanos, quanto a bondade e pureza de coração não temos muito de que nos vangloriarmos; mas Jesus sabe que, relativamente aos filhos, somos capazes de uma generosidade sem limites. Por isso nos encoraja: se tivermos fé, o Pai dar-nos-á o seu Espírito.

Nós cristãos, discípulos do Senhor, pedimos às famílias do mundo que nos ajudem. Somos tantos a participar nesta celebração e isto, em si mesmo, já é algo de profético, uma espécie de milagre no mundo de hoje, que está cansado de inventar novas divisões, novas rupturas, novos desastres. Quem dera que fôssemos todos profetas! Quem dera que cada um de nós se abrisse aos milagres do amor a bem da família própria e de todas as famílias do mundo, para assim – estou a falar de milagres de amor – podermos superar o escândalo dum amor mesquinho e desconfiado, fechado em si mesmo e impaciente com os outros! A propósito da palavra «impaciente», deixo-vos uma pergunta à qual cada um responderá para si: na minha casa, grita-se ou fala-se com amor e ternura? É uma boa maneira de medir o nosso amor.

Como seria bom se por todo o lado, mesmo para além das nossas fronteiras, pudéssemos encorajar e apreciar esta profecia e este milagre! Renovemos a nossa fé na palavra do Senhor, que convida as nossas famílias para esta abertura; que convida a todos a participarem na profecia da aliança entre um homem e uma mulher, que gera vida e revela Deus. Que nos ajude a participar na profecia da paz, da ternura e do carinho familiar. Que nos ajude a participar no gesto profético de cuidar, com ternura, paciência e amor, das nossas crianças e dos nossos avós.

Toda a pessoa que desejar formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por cada acção que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está vivo e operante –, encontrará gratidão e estima, independentemente do povo, região ou religião a que pertença.

Que Deus nos conceda a todos ser profetas da alegria do Evangelho, do Evangelho da família, do amor da família, ser profetas como discípulos do Senhor, e nos conceda a graça de ser dignos desta pureza de coração que não se escandaliza do Evangelho. Que assim seja.

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Visita aos presidiários do Instituto Curran-Fromhold em Filadélfia (27 de setembro)

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Vou falar em espanhol, porque não sei falar em inglês, mas ele [indica o intérprete] fala muito bem inglês e vai traduzir o que digo. Obrigado pela recepção e a possibilidade de estar aqui convosco compartilhando este período da vossa vida. Um período difícil, cheio de tensões. Um período que – bem sei – é doloroso não só para vós, mas também para as vossas famílias e toda a sociedade; porque uma sociedade, uma família que não sabe sofrer com as dores dos seus filhos, que não as leva a sério, que as trata como coisas «naturais»considerando-as normais e previsíveis, é uma sociedade «condenada» a permanecer prisioneira de si mesma, prisioneira de tudo o que a faz sofrer. Eu vim aqui como pastor, mas sobretudo como irmão para compartilhar a vossa situação e fazê-la minha também; vim para podermos rezar juntos e apresentar ao nosso Deus aquilo que nos dói e também o que nos encoraja, e receber d’Ele a força da Ressurreição.

Recordo o Evangelho em que Jesus lava os pés aos seus discípulos durante a Última Ceia. Uma atitude que os discípulos tiveram dificuldade em compreender, incluindo São Pedro que reage dizendo-Lhe: «Tu nunca me hás-de lavar os pés!» (Jo13, 8).

Naquele tempo era costume, quando uma pessoa chegava a casa, lavar-lhe os pés. As pessoas eram recebidas sempre assim. É que não havia estradas asfaltadas, eram estradas poeirentas, com o cascalho que se enfiava nas sandálias. Todos percorriam caminhos que os deixavam impregnados de pó, quando não se feriam em alguma pedra ou faziam qualquer corte. No Cenáculo, vemos Jesus que lava os pés, os nossos pés, os pés dos seus discípulos de ontem e de hoje.

Todos sabemos que viver é caminhar, viver é seguir por várias estradas, diferentes caminhos que deixam a sua marca na nossa vida.

E pela fé, sabemos que Jesus nos procura, quer curar as nossas feridas, curar os nossos pés das chagas dum caminho cheio de solidão, limpar-nos do pó que se foi agarrando a nós ao longo das estradas que cada um percorreu. Jesus não nos pergunta por onde andámos, nem nos interroga sobre o que andávamos a fazer. Pelo contrário, diz-nos: «Se Eu não te lavar, nada terás a ver comigo»(Jo13, 8). Se não te lavar os pés, não poderei dar-te a vida que o Pai sempre sonhou, a vida para que te criou. Ele vem ao nosso encontro para nos calçar de novo coma dignidade dos filhos de Deus. Quer ajudar-nos a recompor o nosso andar, retomar o nosso caminho, recuperara nossa esperança, restituir-nos a fé e a confiança. Quer que regressemos às estradas da vida, sentindo que temos uma missão; que este tempo de reclusão nunca foi e nunca há-de ser sinónimo de expulsão.

Viver supõe «sujar-se os nossos pés»pelas estradas poeirentas da vida e da história. E todos precisamos de ser purificados, ser lavados. Todos. E eu, o primeiro de todos. Todos somos procurados por este Mestre que nos quer ajudar a retomar o caminho. O Senhor procura-nos a todos, para nos dar a sua mão. É penoso constatar como às vezes se geram sistemas prisionais que não procuram curar as chagas, curar as feridas, criar novas oportunidades. É doloroso constatar como às vezes se pensa que só alguns precisam de ser lavados, purificados, sem considerar que o seu cansaço, o seu sofrimento, as suas feridas são também o cansaço, o sofrimento e as feridas de toda uma sociedade. O Senhor no-lo mostra claramente através dum gesto: lavar os pés e voltar à mesa; uma mesa, da qual Ele quer que ninguém fique fora. A mesa que foi preparada para todos e para a qual todos somos convidados.

Este período da vossa vida só pode ter um objectivo: estender a mão para retomar o caminho, estender a mão para que ajude à reintegração social. Uma reintegração de que todos fazemos parte, que todos somos chamados a estimular, acompanhar e realizar. Uma reintegração procurada e desejada por todos: reclusos, famílias, funcionários, políticas sociais e educativas. Uma reintegração que beneficia e eleva o nível moral de toda a comunidade e a sociedade.

E desejo encorajar-vos a manter esta atitude entre vós, com todas as pessoas quede alguma maneira fazem parte deste Instituto. Sede artífices de oportunidades, sede artífices de caminho, sede artífices de novas vias.

Todos temos alguma coisa de que ser limpos e purificados. Todos. Que a consciência disto nos desperte para a solidariedade entre todos, para nos apoiarmos e procurarmos o melhor para os outros.

Fixemos os olhos em Jesus que nos lava os pés: Ele é «o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14, 6), que nos vem fazer sair da mentira de crer que nada pode mudar, da mentira de crer que ninguém pode mudar. Jesus ajuda-nos a caminhar por sendas devida e plenitude. Que a força do seu amor e da sua Ressurreição seja sempre caminho de vida nova.

E assim mesmo, como estamos – cada um no seu lugar, sentado, em silêncio –, peçamos ao Senhor que nos abençoe: O Senhor vos abençoe e proteja. Faça brilhar sobre vós o seu rosto e vos dê a sua graça. Ele vos descubra o seu rosto e vos conceda a paz. Obrigado!

Palavras no final do encontro:

A cadeira que fizestes é muito bonita, muito bela. Muito obrigado pelo trabalho!

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Encontro com os Bispos participantes do Encontro Mundial das Famílias - Seminário São Carlos Borromeu em Filadélfia (26 de setembro)


Irmãos Bispos, bom dia!

Tenho gravado no meu coração as histórias, o sofrimento e a angústia dos menores que foram abusados sexualmente por sacerdotes. Continua oprimindo-me a vergonha causada por pessoas que, tendo a seu cargo o cuidado daqueles pequenos, os violaram causando-lhes graves danos. Lamento-o profundamente. Deus chora. Os crimes e pecados dos abusos sexuais de menores não podem ser mantidos em segredo por mais tempo; comprometo-me a uma zelosa vigilância da Igreja para proteger os menores e prometo que todos os responsáveis prestarão contas. Os sobreviventes de abusos transformaram-se em verdadeiros arautos de esperança e ministros de misericórdia. Devemos a nossa humilde gratidão a cada um deles e às suas famílias pelo seu valor imenso de fazer brilhar a luz de Cristo sobre o mal que é o abuso sexual de menores. Digo isto porque acabo de encontrar um grupo de pessoas abusadas quando eram crianças, que são ajudadas e acompanhadas aqui em Filadélfia com um carinho especial pelo Arcebispo, D. Chaput. E senti que tinha de vos comunicar isto.

Sinto-me feliz por ter a oportunidade de partilhar estes momentos de reflexão pastoral convosco, na jubilosa ocasião do Encontro Mundial das Famílias. Falo em castelhano, porque me disseram que todos sabem castelhano.

De facto, para a Igreja, a família não é primariamente um motivo de preocupação, mas a feliz confirmação da bênção de Deus à obra-prima da criação. Cada dia, em todos os cantos do planeta, a Igreja tem motivos para se alegrar com o Senhor pelo dom daquele povo numeroso de famílias que, mesmo nas mais duras provas, honram as promessas e guardam a fé.

Assim eu diria que o primeiro impulso pastoral, que nos pede esta desafiadora transição de época, é precisamente um passo decidido na linha de tal reconhecimento. A estima e a gratidão devem prevalecer sobre o lamento, apesar de todos os obstáculos que enfrentamos. A família é o lugar fundamental da aliança da Igreja com a criação, com esta criação de Deus, já que Deus abençoou o último dia com uma família. Sem a família, a Igreja também não existiria: não poderia ser aquilo que deve ser, isto é, sinal e instrumento da unidade do género humano (cf. Lumen gentium, 1).

Naturalmente a compreensão que dela possuímos, plasmada com base na integração da forma eclesial da fé e da experiência conjugal da graça, abençoada pelo sacramento, não deve fazer-nos esquecer a profunda transformação do contexto actual, que incide sobre a cultura social – e lamentavelmente também legal – dos laços familiares e que nos afecta a todos, crentes e não-crentes. O cristão não está «imune» das mudanças do seu tempo; e este mundo concreto, com as suas múltiplas problemáticas e possibilidades, é o lugar onde temos de viver, acreditar e anunciar.

Em tempos passados, vivíamos num contexto social em que as afinidades entre a instituição civil e o sacramento cristão eram substanciais e compartilhadas: os dois estavam interligados e apoiavam-se mutuamente. Agora já não é assim. Para descrever a situação actual, escolheria duas imagens típicas da nossa sociedade: duma parte as conhecidas lojas, pequenos negócios das nossas terras; da outra os grandes supermercados ou centros comerciais.

Algum tempo atrás, podia-se encontrar numa mesma loja todas as coisas necessárias para a vida pessoal e familiar – é certo que expostas pobremente, com poucos produtos e, consequentemente, poucas possibilidades de escolha. Mas havia uma ligação pessoal entre o vendedor e os clientes da vizinhança. Vendia-se a crédito, isto é, havia confiança, havia conhecimento, havia proximidade. Um fiava-se do outro. Tinha a coragem de fiar-se. Em muitos lugares, tal negócio era conhecido como «a venda local».

Entretanto, nas últimas décadas, desenvolveram-se e expandiram-se negócios de outro tipo: os centros comerciais, espaços imensos com grande variedade de mercadorias. O mundo parece que se tornou um grande supermercado, onde a cultura adquiriu uma dinâmica competitiva. Já não se vende a crédito, não se pode confiar nos outros. Não há ligação pessoal, relação de vizinhança. A cultura actual parece incentivar as pessoas para entrarem na dinâmica de não se prender a nada nem a ninguém. A não fiar, nem fiar-se. É que hoje a coisa mais importante parece ser esta: correr atrás da última tendência ou da última actividade. E isto também a nível religioso. Parece ser o consumo é que determina o que é importante hoje. Consumir relações, consumir amizades, consumir religiões, consumir, consumir... Não importa o custo nem as consequências. Um consumo que não gera ligações, um consumo que pouco tem a ver com as relações humanas. As ligações são meramente um «meio» para satisfazer as «minhas necessidades». O próximo, com o seu rosto, com a sua história, com os seus afectos, deixou de ser importante.

E este comportamento gera uma cultura que descarta tudo aquilo que já «não serve» ou «não satisfaz» os gostos do consumidor. Fizemos da nossa sociedade uma imensa vitrine multicultural, atenta apenas aos gostos de alguns «consumidores», enquanto muitos, muitíssimos outros «comem as migalhas que caem da mesa de seus donos» (Mt 15, 27).

Isto provoca uma grande ferida, uma ferida cultural muito grande. Atrevo-me a dizer que uma das principais pobrezas ou raízes de muitas situações contemporâneas é a solidão radical a que se vêem forçadas muitas pessoas. E assim, indo atrás do que «me agrada», olhando ao aumento do número de «seguidores» numa rede social qualquer, as pessoas seguem a proposta oferecida por esta sociedade contemporânea. Uma solidão temerosa de qualquer compromisso e numa busca frenética de se sentir conhecido.

Devemos condenar os nossos jovens por terem crescido nesta sociedade? Devemos excomungá-los, porque vivem neste mundo? Será preciso ouvirem da boca dos seus pastores frases como estas: «dantes era melhor», «o mundo está um desastre e, se continuar assim, não sabemos como iremos acabar»? Isto lembra-me um tango argentino! Não, não creio que seja esta a estrada. Nós pastores, seguindo os passos do Pastor, somos convidados a procurar, acompanhar, erguer, curar as feridas do nosso tempo. Olhar a realidade com os olhos de quem sabe que é chamado a mover-se, é chamado à conversão pastoral. O mundo actual pede-nos com insistência esta conversão pastoral. «É vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém»(Evangelii gaudium,23). O Evangelho não é um produto de consumo, não entra nesta cultura do consumismo.

Enganar-nos-íamos se interpretássemos a desafeição, que a cultura do mundo actual tem pelo matrimónio e a família, só em termos de puro e simples egoísmo. Será que os jovens deste tempo se tornaram todos irremediavelmente medrosos, frágeis, inconsistentes? Não nos deixemos cair na cilada! Muitos jovens, no meio desta cultura dissuasiva, interiorizaram uma espécie de medo inconsciente, têm medo, um medo inconsciente, e não seguem os impulsos mais belos e mais altos, e também mais necessários. Há muitos que adiam o matrimónio à espera das condições ideais de bem-estar. Entretanto a vida é consumida, sem sabor. É que a sabedoria dos verdadeiros sabores matura com o tempo, como fruto de um generoso investimento da paixão, da inteligência, do entusiasmo.

Dizia, há dias no Congresso, que estamos a viver uma cultura que impele e convence os jovens a não fundarem família, uns por falta de meios materiais para o fazerem e outros por terem tantos meios que se sentem cómodos assim, mas esta é a tentação de não fundar uma família.

Como pastores, nós bispos, somos chamados a reunir as forças e a relançar o entusiasmo pelo nascimento de famílias que correspondam mais plenamente à bênção de Deus, segundo a sua vocação. Devemos investir as nossas energias não tanto para explicar uma vez e outra os defeitos da actual condição hodierna e os valores do cristianismo, como sobretudo convidar com audácia os jovens a serem ousados na opção do matrimónio e da família. Em Buenos Aires, quantas mulheres se lamentavam: «Tenho o meu filho com 30, 32, 34 anos e não se casa; não sei que fazer!» - «Senhora, deixe de lhe passar as camisas a ferro». Temos de entusiasmar os jovens a correrem este risco; mas é um risco de fecundidade e de vida.

Também aqui é precisa uma santa ousadia dos Bispos. «Por que não te casas?» - «Sim, tenho namorada, mas não sabemos... porque sim, porque não... juntamos dinheiro para a festa, porque para isso é preciso tanto...». A santa ousadia de os acompanhar e fazer amadurecer para o compromisso do matrimónio.

Um cristianismo, que pouco «faz» na realidade e «se explica» infinitamente na formação, vive numa desproporção perigosa; diria, num verdadeiro e próprio círculo vicioso. O pastor deve mostrar que o «Evangelho da família» é verdadeiramente a «boa notícia» num mundo em que a atenção para consigo mesmo parece reinar soberana. Não se trata de fantasia romântica: a tenacidade em formar uma família e levá-la por diante transforma o mundo e a história. São as famílias que transformam o mundo e a história.

O pastor anuncia serena e apaixonadamente a Palavra de Deus, encoraja os crentes a apostarem alto. Tornará os seus irmãos e irmãs capazes de acolher e praticar a promessa de Deus, que alarga a própria experiência da maternidade e da paternidade para o horizonte duma nova «familiaridade» com Deus (cf. Mc 3, 31-35).

O pastor vela pelo sonho, a vida, o crescimento das suas ovelhas. Este «velar» não nasce dos discursos feitos, mas do cuidado pastoral. Só é capaz de velar quem sabe estar «no meio», quem não tem medo das perguntas, quem não tem medo do contacto, do acompanhamento. O pastor vela, antes de tudo, com a oração, sustentando a fé do seu povo, transmitindo confiança no Senhor, na sua presença. O pastor permanece sempre vigilante, ajudando a levantar o olhar quando aparecem o desânimo, a frustração ou as quedas. Seria bom perguntar-nos se, no nosso ministério pastoral, sabemos «perder» tempo com as famílias. Sabemos estar com elas, partilhar as suas dificuldades e as suas alegrias?

Naturalmente o traço fundamental do estilo de vida do bispo é, em primeiro lugar viver o espírito desta jubilosa familiaridade com Deus e, em segundo lugar, propagar a emocionante fecundidade evangélica, rezar e anunciar o Evangelho (cf. Act 6, 4). E sempre me chamou a atenção e impressionou quando, nos primeiros tempos da Igreja, os helenistas foram reclamar, porque as viúvas e os órfãos não eram bem atendidos; é claro, os apóstolos não tinham mãos para tudo, então negligenciavam. Que fizeram? Reuniram-se e inventaram os diáconos. O Espírito Santo inspirou-lhes que constituíssem diáconos; e Pedro, ao anunciar a decisão, explica: Vamos escolher sete homens assim e assim, para que se ocupem deste trabalho. A nós, cabe-nos duas coisas: a oração e a pregação. Qual é o primeiro trabalho do Bispo? Orar, rezar. E o segundo trabalho, que se vem juntar a este: pregar. Ajuda-nos esta definição dogmática - se eu estiver errado, o Cardeal Müller ajuda-nos –, porque define qual é o papel do Bispo. O Bispo é constituído para pastorear, é pastor; mas pastorear primeiro com a oração e com o anúncio; em seguida, vem o resto, se houver tempo.

Assim nós mesmos, aceitando humildemente a aprendizagem cristã das virtudes domésticas do povo de Deus, assemelhar-nos-emos cada vez mais a pais e mães (como Paulo; veja-se 1 Ts 2, 7.11), evitando transformar-nos em pessoas que aprenderam simplesmente a viver sem família. Afastar-nos da família leva-nos pouco a pouco a ser pessoas que aprendem a viver sem família, o que é feio, muito feio. De facto, o nosso ideal não é viver sem afectos. O bom pastor renuncia a afectos familiares próprios, para destinar todas as suas forças – e a graça da sua vocação especial – à bênção evangélica dos afectos do homem e da mulher que dão vida ao desígnio da criação de Deus, a começar pelos afectos perdidos, abandonados, feridos, arrasados, humilhados e privados da sua dignidade. Esta entrega total ao amor de Deus não é, por certo, uma vocação alheia à ternura e ao bem-querer! Bastar-nos-á olhar para Jesus, para entendermos isso (cf. Mt 19,12). A missão do bom pastor segundo o estilo de Deus – só Deus o pode autorizar, não a sua própria presunção! – imita, em tudo e para tudo, o estilo afectivo do Filho para com o Pai, que se reflecte na ternura da sua entrega: em favor, e por amor, dos homens e mulheres da família humana.

Na perspectiva da fé, este é um tema precioso. O nosso ministério tem necessidade de desenvolver a aliança da Igreja e da família. A partir de Oseias – sublinho –, procuremos desenvolver a aliança entre a Igreja e a família. Caso contrário, definha; e, por nossa culpa, a família humana distanciar-se-á irremediavelmente da Feliz Notícia dada por Deus e irá ao supermercado comprar o produto de moda que naquele momento mais lhe apraz.

Se formos capazes deste rigor dos afectos de Deus, usando infinita paciência, e sem ressentimento, com os sulcos nem sempre lineares onde devemos semeá-los – pois muitas vezes temos de semear em sulcos tortos –, até uma mulher samaritana com cinco «não-maridos» se descobrirá capaz de dar testemunho. E, para um jovem rico que tristemente sente que deve pensar ainda com calma, haverá um maduro publicano que descerá precipitadamente da árvore e far-se-á paladino dos pobres, nos quais nunca pensara até então.

Irmãos, que Deus nos conceda o dom desta nova proximidade entre a família e a Igreja. Precisa dela a família, precisa dela a Igreja precisamos dela nós os pastores.

A família é o nosso aliado, a nossa janela aberta para o mundo, a família é a evidência duma bênção irrevogável de Deus destinada a todos os filhos desta história difícil e maravilhosa da criação que Deus nos pediu para servir. Muito obrigado!

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Vigília de oração com as famílias - Parque Benhamin Franklin, Filadélfia (26 de setembro)

Queridos irmãos e irmãs,
Queridas famílias!

Obrigado a todos aqueles que deram um testemunho. Obrigado a todos aqueles que nos alegraram com a arte, com a beleza, que é o caminho para chegar a Deus. A beleza nos leva a Deus. E um testemunho verdadeiro nos leva a Deus, porque Deus também é a verdade. É a beleza e a verdade. E um testemunho dado como serviço é bom, nos faz bem, porque Deus é bondade. Isso nos leva a Deus. Tudo aquilo que é bom, tudo o que é verdadeiro e tudo o que é belo leva-nos a Deus. Porque Deus é bom, Deus é belo, Deus é a verdade.

Obrigado a todos, por aqueles que nos transmitiram aqui uma mensagem e pela vossa presença, que é também um testemunho. Um verdadeiro testemunho de que a vida familiar vale a pena. De que uma sociedade cresce forte, cresce boa, cresce bela e verdadeira quando edifica-se sobre o fundamento da família.

Uma vez, um menino me perguntou – vós sabeis que as crianças perguntam coisas difíceis –, ele perguntou: «Padre, o que Deus estava a fazer antes de criar o mundo?». Garanto-vos que me custou responder. E eu lhe disse o que eu vos digo agora: Antes de criar o mundo, Deus amava, porque Deus é amor; mas tal era o amor que Ele tinha em si mesmo – esse amor entre o Pai e o Filho no Espírito Santo era tão grande, tão desbordante – não sei se isso é muito teológico, mas me entendereis – era tão grande que não podia ser egoísta. Tinha que sair de si mesmo para ter a quem amar fora de si. E assim, Deus criou o mundo. Então Deus fez esta maravilha onde vivemos. E que, como estamos um pouco desnorteados, estamos a destrui-la. Mas a coisa mais bela que Deus fez – diz a Bíblia – foi a família. Ele criou o homem e a mulher. E entregou-lhes tudo. Entregou-lhes o mundo: «Sede fecundos e multiplicai, cultivai a terra, fazei-a dar fruto, fazei-a crescer». Todo o amor com que fez esta maravilhosa Criação a entregou para uma família.

Vamos voltar um pouco. Todo o amor que Deus tem em si, toda a beleza que Deus tem em si, toda a verdade que Deus tem em si mesmo, entrega-a para a família. E uma família é verdadeiramente família quando ela é capaz de abrir os braços e receber todo esse amor. É evidente que o paraíso terrestre não existe mais, que a vida tem seus problemas, que os homens – pela astúcia do demónio – aprenderam a dividir-se. E todo esse amor que Deus nos deu quase se perde. E logo em seguida, teve lugar o primeiro assassinato, o primeiro fratricídio. Um irmão mata o outro irmão: a guerra. O amor, a beleza e a verdade de Deus, e a destruição da guerra. E é entre essas duas posições que nós caminhamos hoje. Cabe a nós escolher, cabe a nós decidir o caminho a percorrer.

Mas voltemos ao início. Quando o homem e sua esposa equivocaram-se e se afastaram de Deus, Deus não os deixou sozinhos. Tanto era o amor. Tanto era o amor que começou a caminhar com a humanidade, Ele começou a caminhar com o seu povo, até que chegou o momento maduro e deu a demonstração do maior amor: Seu Filho. E para onde mandou Seu Filho? Para um palácio, à uma cidade, para construir uma empresa? Enviou-o para uma família. Deus entrou no mundo numa família. E pôde fazê-lo porque essa família era uma família que tinha um coração aberto ao amor, que tinha as portas abertas. Pensemos em Maria, jovenzinha. Não tinha como entender: «Como isso pode acontecer?». E quando explicaram-na, ela obedeceu. Pensemos em José, cheio de esperanças de formar um lar, e encontra-se esta surpresa a qual não entende. Aceita, obedece. E na obediência de amor desta mulher, Maria, e deste homem, José, dá-se uma família em que veio Deus. Deus sempre bate às portas dos corações. Ele gosta de fazê-lo. Vem do seu interior. Mas sabeis do que Deus mais gosta? Bater às portas das famílias. E encontrar as famílias unidas, encontrar as famílias que se amam, encontrar as famílias que crescem os seus filhos e os educam e seguem em frente com eles, e criam uma sociedade de bondade, verdade e beleza.

Estamos na festa das famílias. A família tem uma carta de cidadania divina. Está claro? A carta de cidadania que a família tem foi Deus que lhe deu para que no seu seio crescesse cada vez mais a verdade, o amor e a beleza. Certamente, alguns de vós podeis dizer-me: «Padre, o senhor fala assim porque é solteiro». Na família há dificuldades. Nas famílias discutimos. Nas famílias, às vezes, «voam os pratos». Nas famílias os filhos dão dor de cabeça. Não vou falar das sogras. Mas nas famílias sempre, sempre, existe a cruz. Sempre. Porque o amor de Deus, o Filho de Deus, também nos abriu este caminho. Mas nas famílias também, depois da cruz, há ressurreição, porque o Filho de Deus nos abriu esse caminho. Por isso, a família é – perdoai-me a palavra – uma fábrica de esperança; esperança de vida e ressurreição, porque foi Deus quem abriu esse caminho. E os filhos. Os filhos dão trabalho. Nós, como filhos, dêmos trabalho. Às vezes, em casa, vejo alguns dos meus colaboradores que vêm trabalhar com olheiras. Eles têm um bebé de um mês, dois meses. Eu lhes pergunto: «Não dormiste?». Respondem: «Não, chorou a noite toda». Na família há dificuldades, mas essas dificuldades são superadas com amor. O ódio não supera nenhuma dificuldade. A divisão dos corações não supera nenhuma dificuldade. Só o amor é capaz de superar a dificuldade. Amor é festa, o amor é a alegria, o amor é seguir em frente.

Não quero continuar a falar, porque está ficando muito longo, mas eu queria marcar dois pequenos pontos sobre a família com os quais queria que se tivesse um cuidado especial. Não só queria. Temos de tomar um cuidado especial. As crianças e os avós. As crianças e os jovens são o futuro, são a força, aqueles que levam as coisas para frente. São aqueles em colocamos a esperança. Os avós são a memória da família. São aqueles que nos deram a fé, transmitiram-nos a fé. Cuidar dos avós e cuidar das crianças é a demonstração de amor, não sei se maior, mas – eu diria – mais promissória da família, porque eles prometem o futuro. Um povo que não sabe cuidar das crianças e um povo que não sabe cuidar dos avós é um povo sem futuro, porque não tem nenhuma força e nenhuma memória para seguir em frente. Pois bem, a família é bela, mas custa, traz problemas. Na família, às vezes, há inimizades. O marido briga com a mulher, ou olham-se mal, ou os filhos com o pai. Dou-vos um conselho: Nunca termineis o dia sem fazer as pazes na família. Numa família não se pode terminar o dia em guerra. Que Deus vos abençoe. Que Deus vos dê forças. Que Deus vos incentive a seguir em frente. Cuidemos da família. Defendamos a família, porque nela o nosso futuro está em jogo. Obrigado. Que Deus vos abençoe e rezeis por mim, por favor.


Queridos irmãos e irmãs,
Queridas famílias!

Quero agradecer, antes de mais nada, às famílias que tiveram a coragem de partilhar connosco a sua vida. Obrigado pelo vosso testemunho! É sempre um presente poder ouvir as famílias partilharem as suas experiências de vida; toca o coração. Sentimos que nos falam de coisas verdadeiramente pessoais e únicas, mas que de certa forma nos dizem respeito a todos. Ouvindo as suas experiências, podemos sentir-nos envolvidos, interpelados como esposos, como pais, como filhos, irmãos, avós. Enquanto as ouvia, eu pensava como é importante partilhar a vida das nossas casas e ajudar-nos a crescer nesta tarefa linda e desafiadora que é «ser família».

Encontrar-me convosco faz-me pensar num dos mistérios mais belos do cristianismo. Deus não quis vir ao mundo senão através duma família. Deus não quis aproximar-se da humanidade senão através duma casa. Para Si mesmo, Deus não quis outro nome senão o de «Emanuel» (cf. Mt 1, 23): é o Deus connosco. E este foi, desde o princípio, o seu sonho, o seu propósito, a sua luta incansável para nos dizer: «Eu sou o Deus convosco, o Deus para vós». É o Deus que, desde os primórdios da criação, afirmou: «Não é conveniente que o homem esteja só» (Gn 2, 18). E nós podemos continuar dizendo: não é conveniente que a mulher esteja só, não é conveniente que a criança, o idoso, o jovem estejam sós; não é conveniente. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne (cf. Gn 2, 24). Os dois serão uma só morada, uma família.

E assim desde tempos imemoriais, no mais fundo do nosso coração, ouvimos estas palavras que tocam fortemente o nosso íntimo: não é conveniente que tu estejas só. A família é o grande dom, o grande presente deste «Deus connosco» que não quis abandonar-nos à solidão de viver sem ninguém, sem desafios, sem morada.

Deus não Se limita a sonhar, mas procura fazer tudo «connosco». O sonho de Deus continua a realizar-se nos sonhos de muitos casais que têm a coragem de fazer, da sua vida, uma família.

Por isso, a família é o símbolo vivo do projecto de amor que um dia o Pai sonhou. Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história, de construir um mundo onde ninguém se sinta só, onde ninguém se sinta supérfluo ou sem lugar.

Nós, cristãos, admiramos a beleza de cada momento familiar, vendo nele como que o lugar onde, gradualmente, aprendemos o significado e o valor das relações humanas. Aprendemos que amar alguém não é apenas um sentimento forte, mas uma decisão, um discernimento, uma promessa (cf. E. Fromm, A arte de amar). Aprendemos a gastar-nos por alguém, e aprendemos que isto vale a pena.

Jesus não era um «solteirão», muito pelo contrário. Desposou a Igreja, fez dela o seu povo. Gastou-Se por aqueles que ama, entregando-Se completamente para que a sua esposa, a Igreja, pudesse sempre experimentar que Ele é o Deus connosco, com o seu povo, com a sua família. Não podemos compreender Cristo sem a sua Igreja, tal como não podemos compreender a Igreja sem o seu esposo, Cristo Jesus, que Se entregou por amor e mostrou-nos que vale a pena fazê-lo.

Gastar-se por amor não é, em si, uma coisa fácil. Como se verificou com o Mestre, há momentos em que este «gastar-se» passa por situações de cruz. Momentos, em que parece que tudo se torna difícil. Penso em tantos pais, tantas famílias a quem falta trabalho, ou têm um trabalho sem direitos que se torna um verdadeiro calvário. Quanto sacrifício para se conseguir o pão de cada dia! Obviamente estes pais, quando chegam a casa, não podem dar o melhor de si aos seus filhos pelo cansaço que trazem.

Penso em tantas famílias que não têm um tecto sob o qual se abrigar, ou vivem em postos sobrelotados que não possuem o mínimo de condições para poder estabelecer laços de intimidade, de segurança, de protecção contra tantos tipos de adversidade.

Penso em tantas famílias que não têm acesso aos serviços básicos de saúde. Famílias, que para os problemas de saúde, especialmente das crianças ou dos idosos, dependem dum sistema que não os trata com seriedade, transcurando a angústia e submetendo estas famílias a grandes sacrifícios para poderem responder aos seus problemas sanitários.

Não podemos imaginar uma sociedade sadia que não dê espaço concreto à vida da família. Não podemos pensar um futuro para uma sociedade que não encontre uma legislação capaz de defender e garantir as condições mínimas e necessárias para que as famílias, especialmente aquelas que estão a começar, possam desenvolver-se. Quantos problemas se resolverão, se as nossas sociedades protegerem e garantirem que o espaço familiar, especialmente o dos jovens recém-casados, encontrará a possibilidade de ter um trabalho digno, uma habitação segura, um serviço de saúde que acompanhe o crescimento da família em todas as fases da vida.

O sonho de Deus continua irrevogável, continua intacto e convida-nos a trabalhar, a comprometer-nos a favor duma sociedade pro família. Uma sociedade, onde «o pão, fruto da terra e do trabalho do homem», continue a ser partilhado em cada casa alimentando a esperança dos seus filhos.

Ajudemo-nos para que este «gastar-se por amor» continue a ser possível. Nos momentos de dificuldade, ajudemo-nos uns aos outros para aliviar o peso. Façamos de modo que uns sejam apoio dos outros, as famílias apoio doutras famílias.

Não há famílias perfeitas, mas isto não nos deve desencorajar. Pelo contrário, o amor aprende-se, o amor vive-se, o amor cresce «moldando-se» segundo as circunstâncias da vida que cada família concreta atravessa. O amor nasce e desenvolve-se sempre entre luzes e sombras. O amor é possível em homens e mulheres concretos que procuram fazer dos conflitos, não a última palavra, mas uma oportunidade. Oportunidade para pedirmos ajuda, oportunidade para nos questionarmos em que devemos melhorar, oportunidade para descobrirmos o Deus-connosco que nunca nos abandona. Este é um grande legado que podemos dar aos nossos filhos, uma óptima lição: é verdade que cometemos erros; é verdade que temos problemas; mas sabemos que estas coisas não são a realidade definitiva. Sabemos que os erros, os problemas, os conflitos são uma oportunidade para nos aproximarmos dos outros e de Deus.

Nesta noite, reunimo-nos para rezar, para o fazer em família, para fazer das nossas famílias o rosto sorridente da Igreja. Para nos encontrarmos com Deus que não quis outra forma para vir ao mundo senão por meio duma família. Para nos encontrarmos com o Deus-connosco, o Deus que está sempre no meio de nós.

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Encontro em prol da liberdade religiosa com a comunidade hispânica e outros imigrantes - Independence Nationcal Historical Park, Filadélfia (26 de setembro)

Queridos amigos!

Boa tarde. Um dos momentos salientes da minha visita tem lugar aqui, diante do Independence Mall, local do nascimento dos Estados Unidos da América. Neste lugar, foram proclamadas pela primeira vez as liberdades que definem este País. A Declaração de Independência afirmou que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de alguns direitos inalienáveis e que os governos existem para proteger e defender tais direitos. Estas palavras continuam a ressoar e a inspirar-nos hoje, tal como inspiraram pessoas de todo o mundo, no combate pela liberdade de viver de acordo com a sua dignidade.

A história mostra também que esta verdade, como aliás qualquer verdade, deve ser constantemente reafirmada, assumida e defendida. A história desta nação é também a história dum esforço constante, até aos nossos dias, para encarnar estes altos princípios na vida social e política. Recordamos as grandes lutas que levaram à abolição da escravatura, à extensão do direito de voto, ao crescimento do movimento operário, e ao esforço progressivo por eliminar todas as formas de racismo e preconceito contra a chegada sucessiva de novos americanos. Isto demonstra que um país, quando está determinado a permanecer fiel aos seus princípios, a estes princípios fundadores, que se baseiam no respeito pela dignidade humana, torna-se mais forte e renova-se. Quando um país guarda a memória das suas raízes, continua a crescer, renova-se e continua a acolher dentro das suas fronteiras novos povos e novas pessoas que chegam.

Todos beneficiamos quando se faz memória do nosso passado. Um povo que recorda não repete os erros do passado; pelo contrário, olha confiante para os desafios do presente e do futuro. A memória salva a alma dum povo de tudo aquilo ou de todos aqueles que poderiam tentar dominá-lo ou utilizá-lo para os seus próprios interesses. Quando o exercício efectivo dos respectivos direitos é garantido aos indivíduos e às comunidades, estes não apenas se sentem livres para realizar as suas capacidades, mas também com estas capacidades, com o seu trabalho, contribuem para o bem-estar e enriquecimento de toda a sociedade.

Neste lugar, que é um símbolo do modelo dos Estados Unidos, quereria reflectir convosco sobre o direito à liberdade religiosa. É um direito fundamental que plasma o modo como interagimos social e pessoalmente com nossos vizinhos, cujos pontos de vista religiosos são diferentes dos nossos. O ideal do diálogo inter-religioso, onde todos os homens e mulheres de diferentes tradições religiosas podem dialogar sem brigar, este ideal é dom da liberdade religiosa.

A liberdade religiosa supõe certamente o direito de adorar a Deus, individual e comunitariamente, como a própria consciência dita. Mas, por outro lado, a liberdade religiosa transcende, por sua natureza, os lugares de culto, bem como a esfera privada dos indivíduos e das famílias, porque o facto religioso, a dimensão religiosa não é uma subcultura, faz parte da cultura de qualquer povo e qualquer nação.

As nossas diferentes tradições religiosas servem a sociedade, primariamente através da mensagem que proclamam. Convidam os indivíduos e as comunidades a adorar a Deus, fonte de cada vida, da liberdade e da bondade. Lembram-nos a dimensão transcendente da existência humana e a nossa liberdade irredutível contra a pretensão de qualquer poder absoluto. Basta lançar um olhar à história – faz-nos bem debruçar-nos sobre a história –, especialmente à do século passado, para ver as atrocidades perpetradas pelos sistemas que pretenderam construir este ou aquele «paraíso terrestre» dominando os povos, subjugando-os com princípios aparentemente indiscutíveis e negando-lhes qualquer tipo de direito. As nossas ricas tradições religiosas procuram oferecer significado e orientação, «possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 256). Chamam à conversão, à reconciliação, ao compromisso em prol do futuro da sociedade, ao sacrifício de si mesmo no serviço do bem comum, e à compaixão por aqueles passam necessidade. No coração da sua missão espiritual, encontra-se a proclamação da verdade e da dignidade da pessoa humana, bem como de todos os direitos humanos.

As nossas tradições religiosas lembram-nos que, enquanto seres humanos, somos chamados a reconhecer o Outro que revela a nossa identidade relacional contra qualquer tentativa de instaurar «uma uniformidade que o egoísmo do forte, o conformismo do fraco, ou ainda a ideologia do utopista poderia procurar impor-nos» (M. de Certeau).

Num mundo onde as diferentes formas de moderna tirania procuram suprimir a liberdade religiosa, ou – como disse antes – reduzi-la a uma subcultura sem direito de expressão na esfera pública, ou ainda usara religião como pretexto para o ódio e a brutalidade, torna-se forçoso que os seguidores das diferentes tradições religiosas unam a sua voz para invocar a paz, a tolerância, o respeito pela dignidade e os direitos dos outros.

Nós vivemos numa época sujeita «à globalização do paradigma tecnocrático» (Enc. Laudato si’, 106), que visa conscientemente uma uniformidade unidimensional e procura eliminar todas as diferenças e as tradições numa busca superficial de unidade. As religiões têm, portanto, o direito e o dever de fazer compreender que é possível construir uma sociedade onde «um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valores como tais» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 255), é um «precioso aliado no compromisso pela defesa da dignidade humana, (...) um caminho de paz para o nosso mundo [tão] ferido» (ibid., 257) pelas guerras.

Os Quakers, que fundaram Filadélfia, viviam inspirados por um profundo sentido evangélico da dignidade de cada pessoa e pelo ideal duma comunidade unida pelo amor fraterno. Tal convicção levou-os a fundar uma colónia que haveria de ser um paraíso de liberdade religiosa e tolerância. Este significado de compromisso fraterno em prol da dignidade de todos, especialmente dos mais fracos e vulneráveis, tornou-se parte essencial do espírito norte-americano. Durante a sua visita aos Estados Unidos em 1987, São João Paulo II prestou-vos um comovente tributo, lembrando a todos os americanos que «a prova decisiva da vossa grandeza é o modo como tratais cada ser humano, mas de maneira especial os mais fracos e os mais indefesos» (Discurso na cerimónia de despedida no Aeroporto de Detroit, 19 de Setembro de 1987, 3).

Aproveito esta oportunidade para agradecer a todos aqueles que procuraram, qualquer que seja a sua religião, servir a Deus, o Deus da paz, construindo cidades animadas pelo amor fraterno, cuidando do próximo em necessidade, defendendo a dignidade do dom divino, do dom divino da vida em todas as sua fases, defendendo a causa dos pobres e dos imigrantes. Com muita frequência, em toda a parte, os mais necessitados não são escutados. Vós sois a sua voz, e muitos dentre vós – homens e mulheres religiosos – fizeram com que o seu grito fosse ouvido. Comeste testemunho, que muitas vezes encontra forte resistência, recordais à democracia norte-americana os ideais que a fundaram, e que a sociedade debilita-se cada vez que nela e por toda a parte prevalece a injustiça. Pouco antes, falei da tendência à globalização. A globalização não é má. Pelo contrário, a tendência para nos globalizarmos é boa, une-nos. O que pode ser má é a maneira de a fazer. Se uma globalização pretende fazer a todos iguais, como se fosse uma esfera, tal globalização destrói a riqueza e a singularidade de cada pessoa e de cada povo. Se uma globalização procura unir a todos, mas respeitando em cada pessoa, a sua personalidade, a sua riqueza, a sua peculiaridade, respeitando em cada povo, a sua riqueza, a sua peculiaridade, esta globalização é boa, faz-nos crescer a todos e leva à paz. Aqui, gosto de usar um pouco de geometria. Se a globalização é uma esfera, onde cada ponto aparece igualmente equidistante do centro, anula, não é boa. Se a globalização une como um poliedro, onde todos os pontos estão unidos mas cada um conserva a sua própria identidade, é boa e faz cresce um povo, dá dignidade a todos os homens e favorece os seus direitos.

No nosso meio, temos hoje membros da grande população hispânica dos Estados Unidos, bem como representantes de imigrantes recentes aqui chegados. Obrigado por abrirem as portas. Muitos de vós são emigrantes – saúdo-vos com grande afecto – e muitos de vós emigraram para este país, pagando pessoalmente um alto preço, mas com a esperança de construir uma nova vida. Não desanimeis com as dificuldades que tendes de enfrentar, sejam eles quais forem. Peço para não vos esquecerdes que, tal como aqueles que vieram antes de vós, trazeis muitos talentos a esta nação. Por favor, não vos envergonheis das vossas tradições. Não esqueçais as lições que aprendestes dos vossos antepassados e que podem enriquecer a vida deste país americano. Repito: não vos envergonheis daquilo que faz parte de vós, o sangue da vossa vida. Também vós sois chamados a ser cidadãos responsáveis e a contribuir – como fizeram com tanta determinação os que chegaram antes – a contribuir frutuosamente para a vida das comunidades onde viveis. Penso de modo particular na fé fervorosa de muitos de vós, no sentido profundo da vida familiar e em todos os outros valores que recebeste sem herança. Trazendo as vossas contribuições, não só encontrareis o vosso lugar aqui, mas ajudareis a sociedade a renovar-se a partir de dentro. Não percais a memória do que aconteceu aqui há mais de dois séculos. Não percais a memória daquela Declaração que proclamou que todos os homens e mulheres foram criados iguais e dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis e que os governos existem para proteger e defender estes direitos.

Queridos amigos, agradeço o vosso caloroso acolhimento e o facto de vos terdes reunido hoje comigo. Preservemos a liberdade; cuidemos da liberdade: a liberdade de consciência, a liberdade religiosa, a liberdade de cada pessoa, de cada família, de cada povo, pois é ela que cria lugar para os direitos. Possam esta nação e cada um de vós sentir-se renovados na gratidão pelas muitas bênçãos e liberdades de que gozais. E possais defender estes direitos, especialmente a liberdade religiosa, porque esta foi-vos dada pelo próprio Deus. Ele vos abençoe a todos. E por favor, peço-vos que rezeis um pouco por mim. Obrigado!

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Santa Missa com os bispos, o clero, os religiosos e religiosas da Pensilvânia - Catedral dos Santos Pedro e Paulo, Filadélfia (26 de setembro)

Nesta manhã, aprendi algo mais da história desta bela catedral: a história que está por detrás das suas paredes altas e dos seus vitrais. Contudo prefiro olhar a história da Igreja, nesta cidade e neste Estado, como uma história não de construção de muros, mas do seu derrube. Ela fala-nos de gerações e gerações de católicos comprometidos, saindo para as periferias a fim de construir comunidades de culto, de educação, de caridade e de serviço à sociedade inteira.

Uma tal história é visível nos muitos santuários espalhados por esta cidade, nas suas inúmeras paróquias, cujas agulhas e campanários falam da presença de Deus no meio das nossas comunidades. Vemo-la também nos esforços de todos aqueles sacerdotes, religiosos e leigos que, com dedicação, ao longo de dois séculos, trabalharam pelas necessidades espirituais dos pobres, dos imigrantes, dos doentes e dos encarcerados. Vemo-la também nas inúmeras escolas onde consagrados e consagradas ensinaram as crianças a ler e a escrever, a amar a Deus e ao próximo, e a contribuir como bons cidadãos para a vida da sociedade americana. Tudo isto é a herança verdadeira que recebestes e que sois chamados a enriquecer e transmitir.

Muitos de vós conhecem a história de Santa Catarina Drexel, uma das grandes Santas saídas desta Igreja local. Quando ela falou ao Papa Leão XIII da necessidade das missões, o Papa – era um Papa muito sábio! – perguntou-lhe de maneira incisiva: «E tu, que farás?» Aquelas palavras mudaram a vida de Santa Catarina, porque recordaram-lhe que afinal cada cristão recebeu, em virtude do Baptismo, uma missão. Cada um de nós deve responder, da melhor forma possível, à chamada do Senhor para construir o seu Corpo, que é a Igreja.

«E tu, que farás?» A partir destas palavras, gostaria de me deter sobre dois aspectos, no contexto da nossa missão específica de transmitir a alegria do Evangelho e edificar a Igreja como sacerdotes, diáconos, membros masculinos e femininos de institutos de vida consagrada.

Em primeiro lugar, aquelas palavras – «E tu, que farás?» – foram dirigidas a uma pessoa jovem, uma jovem mulher com ideais elevados, e mudaram a sua vida. Impeliram-na a pensar no trabalho imenso que havia para realizar e a dar-se conta de que também ela era chamada a fazer a sua parte. Quantos jovens, nas nossas paróquias e escolas, têm os mesmos ideais elevados, generosidade de espírito e amor a Cristo e à Igreja! Perguntemo-nos: Somos nós capazes de os pôr à prova? Somos capazes de os guiar e ajudar a fazer a sua parte? A encontrar caminhos para poderem partilhar o seu entusiasmo e os seus dons com as nossas comunidades, sobretudo nas obras de misericórdia e de compromisso a favor dos outros? Partilhamos a própria alegria e entusiasmo que temos em servir o Senhor?

Um dos grandes desafios que a Igreja tem pela frente, nesta geração, é promover, em todos os fiéis, o sentido de responsabilidade pessoal pela missão da Igreja e torná-los capazes de cumprirem tal responsabilidade como discípulos missionários, serem fermento do Evangelho no nosso mundo. Isto exige criatividade para se adaptar às situações em mudança, para levar avante a herança do passado, não primariamente mantendo estruturas e as instituições que também são úteis, mas acima de tudo estando disponíveis para as possibilidades que o Espírito abre diante de nós e comunicando a alegria do Evangelho, todos os dias e em todas as estações da vida.

«E tu, que farás?» É significativo que estas palavras do Papa já idoso tivessem sido dirigidas a uma mulher leiga. Sabemos que o futuro da Igreja, numa sociedade em rápida mudança, exigirá – e já agora o exige – um compromisso cada vez mais activo por parte dos leigos. A Igreja nos Estados Unidos sempre dedicou um enorme esforço ao trabalho da catequese e da educação. O nosso desafio, hoje, é construir alicerces sólidos e promover um sentido de colaboração e responsabilidade compartilhada, quando programamos o futuro das nossas paróquias e instituições. Isto não significa transcurar a autoridade espiritual que nos foi confiada, mas discernir e usar sabiamente os múltiplos dons que o Espírito concede à Igreja. De forma particular, significa valorizar a contribuição imensa que as mulheres, leigas e consagradas, deram e continuam a oferecer na vida das nossas comunidades.

Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos o modo como cada um de vós respondeu à pergunta de Jesus que inspirou a vossa vocação: «E tu, que farás?» Encorajo a deixar-vos renovar na alegria, na maravilha daquele primeiro encontro com Jesus e tirar daquela alegria uma renovada fidelidade e vigor. Vou estar convosco nestes dias, pedindo-vos para transmitirdes a minha afectuosa saudação a todos aqueles que não puderam estar aqui connosco, especialmente a tantos sacerdotes, religiosos e religiosas idosos aqui espiritualmente presentes.

Durante estes dias do Encontro Mundial das Famílias, gostaria de vos pedir para reflectirdes de modo particular sobre a qualidade do nosso ministério com as famílias, os casais que se preparam para o matrimónio e os nossos jovens. Tenho conhecimentos do que se faz nas Igrejas locais para dar resposta às suas necessidades e apoiá-los no seu caminho de fé. Peço-vos que rezeis fervorosamente pelas famílias, bem como pelas decisões do próximo Sínodo sobre a família.

Agora, com gratidão por tudo o que recebemos e com confiante certeza em todas as nossas necessidades, voltamo-nos para Maria, nossa Mãe Santíssima. Que Ela, com o seu amor de mãe, interceda pelo crescimento da Igreja, na América, no testemunho profético do poder da cruz do seu Filho para levar alegria, esperança e força ao mundo. Rezo por cada um de vós e peço-vos, por favor, que rezeis por mim.

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Homilia Santa Missa - Madison Square Garden, Nova Iorque (25 de setembro)

Encontramo-nos no Madison Square Garden, lugar emblemático desta cidade, sede de importantes encontros desportivos, artísticos, musicais, que congregam pessoas de diferentes partes, não só desta cidade, mas do mundo inteiro. Neste lugar, que representa as diferentes faces da vida dos cidadãos que se reúnem por interesses comuns, ouvimos: «O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz» (Is 9, 1). O povo que caminhava, o povo no meio das suas actividades, das suas ocupações diárias; o povo que caminhava carregando seus sucessos e seus erros, seus medos e suas oportunidades. Esse povo viu uma grande luz. O povo que caminhava com as suas alegrias e esperanças, com as suas decepções e amarguras, esse povo viu uma grande luz.

O povo de Deus é chamado, em cada época, a contemplar esta luz. Luz que quer iluminar as nações: assim o proclamava, cheio de júbilo, o velho Simeão. Luz que quer chegar a cada canto desta cidade, aos nossos concidadãos, em cada espaço da nossa vida.

«O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz». Uma das características do povo crente passa pela sua capacidade de ver, de contemplar no meio das suas «obscuridades» a luz que Cristo vem trazer.

O povo crente que sabe olhar, que sabe discernir, que sabe contemplar a presença viva de Deus no meio da sua vida, no meio da sua cidade. Hoje, com o profeta, podemos dizer: o povo que caminha, respira, vive no meio do «smog», viu uma grande luz, experimentou um ar de vida.

Viver numa cidade é algo de bastante complexo: um contexto multicultural, com grandes desafios não fáceis de resolver. As grandes cidades recordam-nos a riqueza escondida no nosso mundo: a variedade de culturas, tradições e histórias. A variedade de línguas, roupas, comida. As grandes cidades tornam-se pólos que parecem apresentar a pluralidade das formas que nós, seres humanos, encontrámos para responder ao sentido da vida nas circunstâncias em que nos achávamos. Por sua vez, as grandes cidades escondem o rosto de muitos que parecem não ter cidadania ou ser cidadãos de segunda categoria. Nas grandes cidades, sob o ruído do tráfego, sob o «ritmo das mudanças», permanecem silenciadas as vozes de tantos rostos que não têm «direito» à cidadania, não têm direito a fazer parte da cidade – os estrangeiros, seus filhos (e não só) que não conseguem a escolaridade, as pessoas privadas de assistência médica, os sem-abrigo, os idosos sozinhos – postos à margem das nossas estradas, nos nossos passeios num anonimato ensurdecedor. E entram a fazer parte duma paisagem urbana que lentamente se torna natural aos nossos olhos e, especialmente, no nosso coração.

Saber que Jesus continua a percorrer as nossas estradas, misturando-Se vitalmente com o seu povo, envolvendo-Se e envolvendo as pessoas numa única história de salvação, enche-nos de esperança, uma esperança que nos liberta daquela força que nos impele a isolar-nos, a ignorar a vida dos outros, a vida da nossa cidade. Uma esperança que nos liberta de «ligações» vazias, das análises abstractas ou da necessidade de sensações fortes. Uma esperança que não tem medo de inserir-se, agindo como fermento, nos lugares onde nos toca viver e actuar. Uma esperança que nos chama a entrever, no meio do «smog», a presença de Deus que continua a caminhar na nossa cidade. Porque Deus está na cidade.

Como é esta luz que passa pelas nossas estradas? Como podemos encontrar Deus que vive connosco no meio do «smog» das nossas cidades? Como podemos encontrar-nos com Jesus vivo e operante no hoje das nossas cidades multiculturais?

O profeta Isaías servir-nos-á de guia neste «aprender a ver». Falou da luz, que é Jesus. E agora, ele apresenta-nos Jesus como «Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz» (9, 5). Assim, nos introduz na vida do Filho, para que seja essa a nossa vida também.

«Conselheiro admirável». Narram os Evangelhos que como muitos Lhe iam perguntar: Mestre, que devemos fazer? O primeiro movimento que Jesus gera com a sua resposta é propor, incitar, motivar. Sempre propõe aos seus discípulos que partam, que saiam. Impele-os a ir ao encontro dos outros, onde realmente estão e não onde gostaríamos que estivessem. Ide uma, duas, três vezes, ide sem medo, ide sem repugnância, ide e anunciai esta alegria que é para todo o povo.

«Deus forte». Em Jesus, Deus fez-Se Emanuel, o Deus-connosco, o Deus que caminha ao nosso lado, que Se misturou com as nossas coisas, nas nossas casas, com as nossas «panelas», como gostava de dizer Santa Teresa de Jesus.

«Pai eterno». Nada e ninguém poderá separar-nos do seu Amor. Ide e anunciai, ide e vivei mostrando que Deus está no meio de vós como um Pai misericordioso que sai cada manhã e cada tarde para ver se o seu filho regressa a casa e, logo que o avista, corre a abraçá-lo. Isso é belo. Um abraço que quer acolher, quer purificar e elevar a dignidade dos seus filhos. Pai que, no seu abraço, é boa notícia para os pobres, alívio para os aflitos, liberdade para os oprimidos, consolação para os tristes (cf. Is 61, 1).

«Príncipe da paz». Ir ter com os outros para partilhar a boa notícia de que Deus é nosso Pai. Ele caminha ao nosso lado, liberta-nos do anonimato, duma vida sem rostos, uma vida vazia, e introduz-nos na escola do encontro. Liberta-nos da guerra da competição, da auto-referencialidade, para nos abrirmos ao caminho da paz. Aquela paz que nasce do reconhecimento do outro, aquela paz que surge no coração ao ver, de modo especial o mais necessitado, como um irmão.

Deus vive nas nossas cidades, a Igreja vive nas nossas cidades. E Deus e a Igreja que vivem nas nossas cidades querem ser fermento na massa, querem misturar-se com todos, acompanhando a todos, anunciando as maravilhas d’Aquele que é Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz.

«O povo que caminhava nas trevas viu uma grande luz», e nós, cristãos, somos suas testemunhas.

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Visita ao Colégio Nossa Senhora Rainha dos Anjos e encontro com crianças e famílias de imigrantes - Harlem, Nova Iorque (25 de setembro)

Queridos Irmãos e Irmãs, boa tarde!

Estou contente por estar aqui convosco, juntamente com toda esta grande família que vos acompanha. Vejo os vossos professores e educadores, os pais e outros familiares. Obrigado pela recepção! E peço desculpa, especialmente aos professores, porque «roubo» qualquer minuto à aula… Estais todos contentes, já sei.

Explicaram-me que uma das características bonitas desta escola e deste trabalho é alguns alunos, alguns de vós, virem doutros lugares, e muitos de outros países. E isso é bom. Embora eu saiba que nem sempre seja fácil ter de deslocar-se e encontrar uma nova casa, encontrar novos vizinhos e amigos; não é fácil, mas é preciso começar. Ao princípio pode ser um pouco cansativo. Muitas vezes acontece ter de aprender uma nova língua, adaptar-se a uma nova cultura, um novo clima. Quantas coisas é preciso aprender! E não falo só dos deveres da escola, mas tantas coisas.

O lado belo é que encontramos também novos amigos. E isto é muito importante: os novos amigos que encontramos. Encontramos pessoas que nos abrem as portas e mostram a sua ternura, a sua amizade, a sua compreensão, e procuram ajudar-nos para que não nos sintamos estranhos, estrangeiros. É todo um trabalho de pessoas que nos vai ajudando a nos sentirmos em casa. E ainda que, às vezes, a imaginação volte para a nossa pátria, encontramos boas pessoas que nos ajudam a nos sentirmos em casa. Como é belo poder sentir a escola, os lugares de reunião, como uma segunda casa. E isso é importante não só para vós, mas também para as vossas famílias. Desta forma, a escola torna-se uma grande família para todos, onde juntamente com as nossas mães, pais, avós, educadores, professores e companheiros aprendemos a ajudar-nos, a partilhar o que há de bom em cada um, a dar o melhor de nós mesmos, a trabalhar em grupo, a jogar em grupo, o que é tão importante, e a perseverar nos nossos objectivos.

Muito perto daqui há uma rua muito importante com o nome duma pessoa que fez muito bem pelos outros e que quero recordar convosco. Refiro-me ao Pastor Martin Luther King. Um dia disse ele: «Tenho um sonho». E sonhou que muitas crianças, muitas pessoas haveriam de ter igualdade de oportunidades. Sonhou que muitas crianças como vós haveriam de ter acesso à educação. E sonhou que muitos homens e mulheres, como vós, pudessem ter a cabeça bem erguida, com a dignidade de quem pode vencer na vida. É bom ter sonhos e é bom poder lutar pelos sonhos. Não vos esqueçais.

Hoje queremos continuar a sonhar, e alegramo-nos por todas as oportunidades que permitam – tanto a vós como a nós, grandes – não perder a esperança num mundo melhor e com maiores possibilidades. E muitas pessoas a quem saudei e que me foram apresentadas também sonham como vós, sonham com isto. E por isso se comprometeram com este trabalho. Comprometeram-se com a vossa vida para acompanhar-vos neste caminho. Todos sonhamos. Sempre. Soube que um dos sonhos dos vossos pais, dos vossos educadores e de todos os que vos ajudam – e também do Cardeal Dolan, que é muito bom! - é que possais crescer e viver com alegria. Aqui vê-se que estais sorridentes: continuai assim e ajudai contagiar com a alegria todas as pessoas que tendes perto. Nem sempre é fácil. Em todas as casas há problemas, situações difíceis, doenças, mas não deixeis de sonhar com que possais viver com alegria.

Todos vós que estais aqui, adultos e crianças, tendes o direito de sonhar, e muito me alegro por poderdes encontrar, seja na escola, seja aqui, nos vossos amigos, nos vossos professores, em todos os que se aproximam para ajudar, o apoio necessário para o fazer. Onde há sonhos, onde há alegria, aí sempre está Jesus. Sempre. Por outro lado, quem é aquele que semeia tristeza, que semeia desconfiança, que semeia inveja, que semeia maus desejos? Como se chama? O diabo. O diabo sempre semeia tristezas, porque não nos quer alegres, não nos quer sonhando. Onde há alegria, aí sempre está Jesus. Porque Jesus é alegria, e quer ajudar-nos para que esta alegria dure todos os dias.

Antes de vos deixar, gostaria de vos dar um «homework», está bem? É um pedido simples, mas muito importante: não vos esqueçais de rezar por mim, para que eu possa partilhar com muitas pessoas a alegria de Jesus. E rezemos também para que muitos possam gozar desta alegria que tendes vós quando vos sentis acompanhados, ajudados, aconselhados, mesmo que existam problemas. Mas há essa paz no coração de que Jesus nunca abandona

Que Deus vos abençoe a todos e a cada um de vós e que Nossa Senhora vos cuide! Obrigado.

E não sabeis cantar alguma coisa? Não sabeis cantar? Vejamos, quem é o mais «sem vergonha»?

[canto]

Obrigado. Muito obrigado.

Então, todos juntos… Uma canção e depois rezamos juntos o Pai-Nosso.

[canto]

Pai-Nosso…

Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo. [Amém]. E rezeis por mim. «Don’t forget the homework».

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Encontro Inter-religioso no memorial Ground Zero - Nova Iorque (25 de setembro)

Vários sentimentos e emoções desperta em mim a presença aqui no Ground Zero, onde milhares de vidas foram arrancadas num acto insensato de destruição. Aqui, a dor é palpável. A água, que vemos correr para este centro vazio, lembra-nos todas aquelas vidas que estavam sob o poder daqueles que crêem que a destruição seja o único modo de resolver os conflitos. É o grito silencioso de quantos sofreram na sua carne a lógica da violência, do ódio, da vingança. Uma lógica, que só pode causar angústia, sofrimento, destruição, lágrimas. A água que desce é símbolo também das nossas lágrimas; lágrimas pela destruição de ontem, que se unem às lágrimas por tantas destruições de hoje. Este é um lugar onde choramos; choramos a angústia provocada por nos sentirmos impotentes perante a injustiça, perante o fratricídio, perante a incapacidade de resolver as nossas diferenças dialogando. Neste lugar choramos pela perda injusta e gratuita de inocentes, por não poder encontrar soluções para o bem comum. É água que nos recorda o pranto de ontem e o pranto de hoje.

Há poucos minutos, encontrei algumas famílias dos primeiros socorristas caídos em serviço. No encontro, pude constatar uma vez mais como a destruição nunca é impessoal, abstracta ou apenas de coisas; mas que antes de tudo tem um rosto e uma história, é concreta, tem nomes. Nos familiares, pode-se ver o rosto da angústia; uma angústia que nos deixa atónitos e brada ao céu.

Mas eles, por sua vez, souberam mostrar-me a outra face deste atentado, a outra face da sua angústia: o poder do amor e da recordação. Uma recordação que não nos deixa vazios. Os nomes de tantas pessoas queridas encontram-se escritos aqui, onde estavam as bases das torres; e, assim, podemos vê-los, tocá-los e nunca mais esquecê-los.

Aqui, no meio duma angústia lancinante, podemos palpar a bondade heróica de que também é capaz o ser humano, a força escondida a que sempre devemos recorrer. No momento de maior angústia, sofrimento, fostes testemunhas dos maiores actos de dedicação e de ajuda. Mãos estendidas, vidas oferecidas. Numa metrópole que pode parecer impessoal, anónima, de grandes solidões, fostes capazes de mostrar a poderosa solidariedade da ajuda mútua, do amor e do sacrifício pessoal. Naquele momento, não era uma questão de sangue, de origem, de bairro, de religião ou de opção política; era questão de solidariedade, de emergência, de fraternidade. Era questão de humanidade. Os bombeiros de Nova Iorque entraram nas torres que estavam a ruir sem dar muita atenção à sua própria vida. Muitos caíram em serviço e, com o seu sacrifício, salvaram a vida de muitos outros.

E este lugar de morte transforma-se também num lugar de vida, de vidas salvas, numa canção que nos leva a afirmar que a vida está destinada sempre a triunfar sobre os profetas da destruição, sobre a morte, que o bem prevalece sempre sobre o mal, que a reconciliação e a unidade sairão vencedores sobre o ódio e a divisão.

Neste lugar de angústia e recordação, enche-me de esperança a oportunidade de me associar aos líderes que representam as numerosas religiões que enriquecem a vida desta cidade. Espero que a nossa presença aqui seja um sinal vigoroso das nossas vontades de compartilhar e reiterar o desejo de sermos forças de reconciliação, forças de paz e justiça nesta comunidade e em todo o mundo. Apesar das diferenças, das discrepâncias, é possível viver um mundo de paz. Perante qualquer tentativa de uniformizar, é possível e necessário que nos reunamos, das diferentes línguas, culturas, religiões, para dar voz a tudo aquilo que o quer impedir. Juntos, hoje, somos convidados a dizer «não» a qualquer tentativa de uniformização e «sim» a uma diferença acolhida e reconciliada.

E, com tal finalidade, precisamos de banir os nossos sentimentos de ódio, vingança, rancor. Mas sabemos que isto só é possível como dom do Céu. Aqui, neste lugar da memória, proponho a cada um de vós que faça, à sua maneira mas juntos, um momento de silêncio e oração. Peçamos ao Céu o dom de nos comprometermos pela causa da paz. Paz nas nossas casas, nas nossas famílias, nas nossas escolas, nas nossas comunidades. Paz naqueles lugares onde a guerra parece não ter fim. Paz naqueles rostos que nada mais conheceram senão angústia. Paz neste vasto mundo que Deus nos deu como casa de todos e para todos. Somente, paz. Rezemos em silêncio.

[alguns momentos de silêncio]

Assim, a vida de nossos entes queridos não será uma vida que vai acabar no esquecimento, mas estará presente todas as vezes que lutarmos por ser profetas de reconstrução, profetas de reconciliação, profetas de paz.

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Visita à Organização das Nações Unidas - Nova Iorque, Palácio de Vidro (25 de setembro)

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores: Bom dia.

Mais uma vez, seguindo uma tradição de que me sinto honrado, o Secretário-Geral das Nações Unidas convidou o Papa para falar a esta distinta assembleia das nações. Em meu nome e em nome de toda a comunidade católica, Senhor Ban Ki-moon, desejo manifestar-lhe a gratidão mais sincera e cordial; agradeço-lhe também as suas amáveis palavras. Saúdo ainda os chefes de Estado e de Governo aqui presentes, os embaixadores, os diplomatas e os funcionários políticos e técnicos que os acompanham, o pessoal das Nações Unidas empenhado nesta LXX Sessão da Assembleia Geral, o pessoal de todos os programas e agências da família da ONU e todos aqueles que, por um título ou outro, participam nesta reunião. Por vosso intermédio, saúdo também os cidadãos de todas as nações representadas neste encontro. Obrigado pelos esforços de todos e cada um em prol do bem da humanidade.

Esta é a quinta vez que um Papa visita as Nações Unidas. Fizeram-no os meus antecessores Paulo VI em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995 e o meu imediato antecessor, hoje Papa emérito Bento XVI, em 2008. Nenhum deles poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caracterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, superação de qualquer limite natural à afirmação do poder. Uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas actividades.

A história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas, que festeja nestes dias o seu septuagésimo aniversário, é uma história de importantes sucessos comuns, num período de inusual aceleração dos acontecimentos. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras aquisições em todos os sectores da projecção internacional das actividades humanas. Todas estas realizações são luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos colectivos. É certo que ainda são muitos os problemas graves por resolver, mas também é evidente que, se faltasse toda esta actividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades. Cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização.

Presto, pois, homenagem a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes setenta anos. Em particular, desejo hoje recordar aqueles que deram a sua vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação.

A experiência destes setenta anos demonstra que, para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objectivo final que é conceder a todos os países, sem excepção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões. Esta necessidade duma maior equidade é especialmente verdadeira nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises económicas. Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento. Os Organismos Financeiros Internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência.

A tarefa das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efectiva distribuição do poder (político, económico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos sectores sem protecção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois sectores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e económicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a protecção do meio ambiente e pondo fim à exclusão.

Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente», por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a acção humana deve reconhecer e respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico» (Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção deste ambiente. Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas. Nós cristãos, juntamente com as outras religiões monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81).

O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo facto de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão económica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem injustamente sofrer as consequências do abuso do ambiente. Estes fenómenos constituem, hoje, a «cultura do descarte» tão difundida e inconscientemente consolidada.

O carácter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a este respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes. A adopção da «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável», durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efectivos.

Todavia não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, embora constituam certamente um passo necessário para a solução dos problemas. A definição clássica de justiça, a que antes me referi, contém como elemento essencial uma vontade constante e perpétua: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efectiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenómeno da exclusão social e económica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos.

A multiplicidade e complexidade dos problemas exigem servir-se de instrumentos técnicos de medição. Isto, porém, esconde um duplo perigo: limitar-se ao exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos – metas, objectivos e indicações estatísticas –, ou julgar que uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios. É preciso não perder de vista, em momento algum, que a acção política e económica só é eficaz quando é concebida como uma actividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e que tem sempre presente que, antes e para além de planos e programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se vêem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer direito.

Para que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam actores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correcto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) –, que é assegurado antes de mais nada respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente.

Ao mesmo tempo, os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efectiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade de espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e todos os outros direitos civis.

Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efectivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade de espírito e educação. Ao mesmo tempo, estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar o direito à existência da própria natureza humana.

A crise ecológica, juntamente com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana. As nefastas consequências duma irresponsável má-gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder, devem constituir um apelo a esta severa reflexão sobre o homem: «O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza» (Bento XVI, Discurso ao Parlamento da República Federal da Alemanha, 22 de Setembro de 2011; citado na Enc. Laudato si’, 6). A criação vê-se prejudicada «onde nós mesmos somos a última instância (…). E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos» (Bento XVI, Discurso ao clero da Diocese de Bolzano-Bressanone, 6 de Agosto de 2008; citado na Enc. Laudato si’, 6). Por isso, a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher (cf. Enc. Laudato si’, 155) e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões (cf. ibid., 123; 136).

Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata actuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra» (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo) e «promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade» (ibid.) corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos e, em última análise, irresponsáveis.

A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos.

Para isso, é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental. A experiência destes setenta anos de existência das Nações Unidas, em geral, e, de modo particular, a experiência dos primeiros quinze anos do terceiro milénio mostram tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico.

O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Contrasta fortemente com estas afirmações – e nega-as na prática – a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares. Uma ética e um direito baseados sobre a ameaça da destruição recíproca – e, potencialmente, de toda a humanidade – são contraditórios e constituem um dolo em toda a construção das Nações Unidas, que se tornariam «Nações Unidas pelo medo e a desconfiança». É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.

O recente acordo sobre a questão nuclear, numa região sensível da Ásia e do Médio Oriente, é uma prova das possibilidades da boa vontade política e do direito, cultivados com sinceridade, paciência e constância. Faço votos de que este acordo seja duradouro e eficaz e, com a colaboração de todas as partes envolvidas, produza os frutos esperados.

Nesta linha, não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional. Por isso, embora desejasse não ter necessidade de o fazer, não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu património cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão.

Estas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos. Nas guerras e conflitos, existem pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem. Seres humanos que se tornam material de descarte, enquanto nada mais se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.

Como pedi ao Secretário-Geral das Nações Unidas, na minha carta de 9 de Agosto de 2014, «a mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas» e para proteger as populações inocentes.

Nesta mesma linha, quero citar outro tipo de conflitualidade, nem sempre assim explicitada, mas que inclui silenciosamente a morte de milhões de pessoas. Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenómeno do narcotráfico. Uma guerra «suportada» e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção, que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.

Comecei a minha intervenção recordando as visitas dos meus antecessores. Agora quereria, em particular, que as minhas palavras fossem como que uma continuação das palavras finais do discurso de Paulo VI, pronunciadas quase há cinquenta anos, mas de valor perene. Cito: «Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade» (Discurso aos Representantes dos Estados, 4 de Outubro de 1965, n. 7). Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: «O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas» (ibid.). Até aqui, as palavras de Paulo VI.

A casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma recta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada.

Tal compreensão e respeito exigem um grau superior de sabedoria, que aceite a transcendência, própria de cada um, renuncie à construção duma elite omnipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e colectiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar» (ibid.).

O Gaúcho Martín Fierro, um clássico da literatura da minha terra natal, canta: «Os irmãos estejam unidos, porque esta é a primeira lei. Tenham união verdadeira em qualquer tempo que seja, porque se litigam entre si, devorá-los-ão os de fora».

O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta uma crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo «todo o fundamento da vida social» e assim «acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses» (Enc. Laudato si’, 229).

O tempo presente convida-nos a privilegiar acções que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 223).

Não podemos permitir-nos o adiamento de «algumas agendas» para o futuro. O futuro exige-nos decisões críticas e globais face aos conflitos mundiais que aumentam o número dos excluídos e necessitados.

A louvável construção jurídica internacional da Organização das Nações Unidas e de todas as suas realizações – melhorável como qualquer outra obra humana e, ao mesmo tempo, necessária – pode ser penhor dum futuro seguro e feliz para as gerações futuras. Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado interesses sectoriais e ideologias e procurarem sinceramente o serviço do bem comum. Peço a Deus omnipotente que assim seja, assegurando-vos o meu apoio, a minha oração, bem como o apoio e as orações de todos os fiéis da Igreja Católica, para que esta Instituição, com todos os seus Estados-Membros e cada um dos seus funcionários, preste sempre um serviço eficaz à humanidade, um serviço respeitoso da diversidade e que saiba potenciar, para o bem comum, o melhor de cada nação e de cada cidadão. Deus vos abençoe a todos!

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Vésperas com o clero e os religiosos - Catedral de São Patrício, Nova Iorque (24 de setembro)

Neste momento, invadem-me dois sentimentos que têm a ver com os meus irmãos muçulmanos. O primeiro, é de felicitação pela hodierna ocorrência do vosso dia do sacrifício. Teria desejado que fosse mais calorosa a minha saudação. O segundo é de solidariedade com o vosso povo pela tragédia que hoje sofreu em Meca. Neste momento de oração, uno-me, unimo-nos em oração a Deus, nosso Pai todo-poderoso e misericordioso.

Ouçamos o Apóstolo: «Exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações» (1 Ped 1,6). Estas palavras lembram-nos uma coisa essencial: a nossa vocação é viver na alegria.

Esta linda catedral de São Patrício, construída ao longo de muitos anos com o sacrifício de tantos homens e mulheres, pode ser um símbolo da obra de gerações de sacerdotes, religiosos e leigos americanos que contribuíram para a edificação da Igreja nos Estados Unidos. Sem querer excluir outros campos, só no campo da educação, quantos sacerdotes e consagrados tiveram um papel central neste país, ajudando os pais a dar aos seus filhos o alimento que os nutre para a vida! Muitos fizeram-no à custa de sacrifícios extraordinários e com caridade heróica. Penso, por exemplo, em Santa Elizabeth Ann Seton, que fundou na América a primeira escola católica gratuita para meninas, ou em São João Neumann, fundador do primeiro sistema de educação católica nos Estados Unidos.

Nesta tarde, queridos irmãos e irmãs, vim rezar convosco, sacerdotes, consagrados, consagradas, para que a nossa vocação continue a construir o grande edifício do Reino de Deus neste país. Sei que vós, como corpo sacerdotal, diante do povo de Deus, sofrestes muito num passado não distante suportando a vergonha por causa de muitos irmãos que feriram e escandalizaram a Igreja nos seus filhos mais indefesos... Com palavras do Apocalipse, digo-vos que «vindes da grande tribulação» (cf. 7, 14). Acompanho-vos neste período de sofrimento e dificuldade; e também agradeço a Deus pelo serviço que realizais acompanhando o povo de Deus. Com o fim de vos ajudar a prosseguir no caminho da fidelidade a Jesus Cristo, deixai-me fazer duas breves reflexões.

A primeira diz respeito ao espírito de gratidão. A alegria de homens e mulheres que amam a Deus atrai a outros; sacerdotes e consagrados chamados a sentir e irradiar uma satisfação permanente com a sua vocação. A alegria brota dum coração agradecido. É verdade! Recebemos muito, tantas graças, tantas bênçãos; e alegramo-nos. Far-nos-á bem repassar com a memória as graças da nossa vida. Memória daquela primeira chamada, memória do caminho percorrido, memória de tantas graças recebidas..., e sobretudo memória do encontro com Jesus Cristo em tantos momentos durante o caminho. Memória do encanto que produz em nosso coração o encontro com Jesus Cristo. Irmãs e Irmãos, consagrados e sacerdotes, peçamos a graça da memória para fazer crescer o espírito de gratidão. Talvez convenha perguntar-nos: Somos capazes de enumerar as bênçãos que vieram sobre nós, ou já me esqueci delas?

A segunda reflexão tem a ver com o espírito de laboriosidade. Um coração agradecido é, espontaneamente, impelido a servir o Senhor e a abraçar um estilo de vida diligente. No momento em que nos damos conta de tudo aquilo que Deus nos deu, o caminho da renúncia a si mesmo a fim de trabalhar para Ele e para os outros torna-se um caminho privilegiado de resposta ao seu amor.

E, no entanto, se formos honestos, sabemos quão facilmente pode ser sufocado este espírito de trabalho generoso e sacrifício pessoal. Há duas maneiras para isso acontecer, sendo ambas exemplo da «espiritualidade mundana», que nos enfraquece no nosso caminho de serviço de mulheres e homens consagrados, e degrada o enlevo, a maravilha do primeiro encontro com Jesus Cristo.

Podemos ficar encastrados quando medimos o valor dos nossos esforços apostólicos pelo critério da eficiência, do funcionamento e do sucesso externo que governa o mundo dos negócios. Não digo que estas coisas não sejam importantes! Foi-nos confiada uma grande responsabilidade e o povo de Deus, justamente, espera resultados. Mas o verdadeiro valor do nosso apostolado é medido pelo valor que o mesmo tem aos olhos de Deus. Ver e avaliar as coisas a partir da perspectiva de Deus chama-nos para uma conversão constante ao primeiro tempo da nossa vocação e – nem é preciso dizê-lo – exige uma grande humildade. A cruz mostra-nos uma maneira diferente de medir o sucesso: a nós cabe-nos semear, e Deus vê os frutos do nosso trabalho. E se, às vezes, os nossos esforços e o nosso trabalho parecem gorar-se e não dar fruto, estamos a trilhar a mesma via de Jesus Cristo; a sua vida, humanamente falando, acabou com um fracasso: com o fracasso da cruz.

Um novo perigo surge quando nos tornamos ciosos do nosso tempo livre, quando pensamos que rodear-nos de comodidades mundanas ajudar-nos-á a servir melhor. O problema, com este modo de raciocinar, é que pode ofuscar a força da chamada diária de Deus à conversão, ao encontro com Ele. Pouco a pouco mas seguramente vai diminuindo o nosso espírito de sacrifício, o nosso espírito de renúncia e de laboriosidade. E afasta também as pessoas que padecem pobreza material, vendo-se obrigadas a fazer sacrifícios maiores do que os nossos, sem serem consagrados. O repouso é uma necessidade, como o são os momentos de tempo livre e de restauração pessoal, mas devemos aprender a descansar de forma que aprofunde o nosso desejo de servir de modo generoso. A proximidade aos pobres, refugiados, imigrantes, doentes, explorados, idosos que sofrem a solidão, encarcerados e muitos outros pobres de Deus ensinar-nos-á outro tipo de repouso, mais cristão e generoso.

Gratidão e laboriosidade: são os dois pilares da vida espiritual que desejava partilhar convosco, sacerdotes, religiosas e religiosos, nesta tarde. Agradeço-vos pelas orações, actividades e sacrifícios diários que realizais nos diferentes campos de apostolado. Muitos deles são conhecidos apenas de Deus, mas dão muito fruto na vida da Igreja.

De maneira especial, gostaria de expressar a minha admiração e a minha gratidão às consagradas dos Estados Unidos. Que seria esta Igreja sem vós? Mulheres fortes, lutadoras; com aquele espírito de coragem que vos coloca na linha da frente a anunciar o Evangelho. A vós consagradas, irmãs e mães deste povo, quero dizer «obrigado», um «obrigado» grandíssimo… e dizer também que gosto muito de vós.

Sei que muitos de vós estais a enfrentar o desafio que supõe a adaptação a um programa pastoral em evolução. Como São Pedro, peço-vos que, perante qualquer prova que tenhais de enfrentar, não percais a paz e respondei como fez Cristo: deu graças ao Pai, tomou a sua cruz e seguiu em frente.

Queridos irmãos e irmãs, em breve, dentro de poucos minutos, cantaremos o Magnificat. Coloquemos nas mãos de Nossa Senhora a obra que nos foi confiada; unamo-nos a Ela agradecendo ao Senhor pelas grandes coisas que fez e pelas grandes coisas que continuará a fazer em nós e em todos aqueles que temos o privilégio de servir. Que assim seja!

***

Visita ao congresso dos Estados Unidos da América - Washington (24 de setembro)

Senhor Vice-Presidente,
Senhor Presidente da Câmara dos Representantes,
Distintos Membros do Congresso,
Queridos Amigos!

Sinto-me muito grato pelo convite para falar a esta Assembleia Plenária do Congresso «na terra dos livres e casa dos valorosos». Apraz-me pensar que o motivo para isso tenha sido o facto de também eu ser um filho deste grande continente, do qual muito recebemos todos nós e relativamente ao qual partilhamos uma responsabilidade comum.

Cada filho ou filha duma determinada nação tem uma missão, uma responsabilidade pessoal e social. A vossa responsabilidade própria de membros do Congresso é fazer com que este país, através da vossa actividade legislativa, cresça como nação. Vós sois o rosto deste povo, os seus representantes. Sois chamados a salvaguardar e garantir a dignidade dos vossos concidadãos na busca incansável e exigente do bem comum, que é o fim de toda a política.

Uma sociedade política dura no tempo quando, como uma vocação, se esforça por satisfazer as carências comuns, estimulando o crescimento de todos os seus membros, especialmente aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade ou risco. A actividade legislativa baseia-se sempre no cuidado das pessoas. Para isso fostes convidados, chamados e convocados por aqueles que vos elegeram.

O vosso trabalho lembra-me, sob dois aspectos, a figura de Moisés. Por um lado, o patriarca e legislador do povo de Israel simboliza a necessidade que têm os povos de manter vivo o seu sentido de unidade com os instrumentos duma legislação justa. Por outro, a figura de Moisés leva-nos directamente a Deus e, por consequência, à dignidade transcendente do ser humano. Moisés oferece-nos uma boa síntese do vosso trabalho: a vós, pede-se para proteger, com os instrumentos da lei, a imagem e semelhança moldadas por Deus em cada rosto humano.

Nesta perspectiva, hoje quereria dirigir-me não só a vós mas, através de vós, a todo o povo dos Estados Unidos. Aqui, juntamente com os seus representantes, quereria aproveitar esta oportunidade para dialogar com tantos milhares de homens e mulheres que se esforçam diariamente por cumprir uma honesta jornada de trabalho, por trazer para casa o pão de cada dia, por poupar qualquer dólar e – passo a passo – construir uma vida melhor para as suas famílias. São homens e mulheres que não se preocupam apenas com pagar os impostos, mas – na forma discreta que os caracteriza – sustentam a vida da sociedade. Geram solidariedade com as suas actividades e criam organizações que ajudam quem tem mais necessidade.

Quereria também entrar em diálogo com as numerosas pessoas idosas que são um depósito de sabedoria forjada pela experiência e que procuram de muito modos, especialmente através do voluntariado, partilhar as suas histórias e experiências. Sei que muitas delas estão aposentadas, mas ainda activas e continuam a empenhar-se na construção deste país. Desejo também dialogar com todos os jovens que lutam por realizar as suas grandes e nobres aspirações, que não se deixam extraviar por propostas superficiais e que enfrentam situações difíceis, tantas vezes resultantes da imaturidade de muitos adultos. Quereria dialogar com todos vós, e desejo fazê-lo através da memória histórica do vosso povo.

A minha visita tem lugar num momento em que homens e mulheres de boa vontade estão a celebrar o aniversário de alguns americanos famosos. Apesar da complexidade da história e da realidade da fraqueza humana, estes homens e mulheres foram capazes, com todas as suas diferenças e limitações, de construir um futuro melhor com trabalho duro e sacrifício pessoal – alguns à custa da própria vida. Deram forma a valores fundamentais, que permanecerão para sempre no espírito do povo americano. Um povo com este espírito pode atravessar muitas crises, tensões e conflitos, já que sempre conseguirá encontrar a força para ir avante e fazê-lo com dignidade. Estes homens e mulheres dão-nos uma possibilidade de ver e interpretar a realidade. Ao honrar a sua memória, somos estimulados, mesmo no meio de conflitos, na vida concreta de cada dia, a haurir das nossas mais profundas reservas culturais.

Quereria mencionar quatro destes americanos: Abraham Lincoln, Martin Luther King, Dorothy Day e Thomas Merton.

Este ano completam-se cento e cinquenta anos do assassinato do Presidente Abraham Lincoln, o guardião da liberdade, que trabalhou incansavelmente para que «esta nação, com a protecção de Deus, pudesse ter um renascimento de liberdade». Construir um futuro de liberdade requer amor pelo bem comum e colaboração num espírito de subsidiariedade e solidariedade.

Todos estamos plenamente cientes e também profundamente preocupados com a situação social e política inquietante do mundo actual. O nosso mundo torna-se cada vez mais um lugar de conflitos violentos, ódios e atrocidade brutais, cometidos até mesmo em nome de Deus e da religião. Sabemos que nenhuma religião está imune de formas de engano individual ou de extremismo ideológico. Isto significa que devemos prestar especial atenção a qualquer forma de fundamentalismo, tanto religioso como de qualquer outro género. É necessário um delicado equilíbrio para se combater a violência perpetrada em nome duma religião, duma ideologia ou dum sistema económico, enquanto, ao mesmo tempo, se salvaguarda a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais. Mas há outra tentação de que devemos acautelar-nos: o reducionismo simplista que só vê bem ou mal, ou, se quiserdes, justos e pecadores. O mundo contemporâneo, com as suas feridas abertas que tocam muitos dos nossos irmãos e irmãs, exige que enfrentemos toda a forma de polarização que o possa dividir entre estes dois campos. Sabemos que, na ânsia de nos libertar do inimigo externo, podemos ser tentados a alimentar o inimigo interno. Imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é o modo melhor para ocupar o seu lugar. Isto é algo que vós, como povo, rejeitais.

Pelo contrário, a nossa resposta deve ser uma resposta de esperança e cura, de paz e justiça. É-nos pedido para fazermos apelo à coragem e à inteligência, a fim de se resolverem as muitas crises económicas e geopolíticas de hoje. Até mesmo num mundo desenvolvido aparecem demasiado evidentes os efeitos de estruturas e acções injustas. Os nossos esforços devem concentrar-se em restaurar a paz, remediar os erros, manter os compromissos, e assim promover o bem-estar dos indivíduos e dos povos. Devemos avançar juntos, como um só, num renovado espírito de fraternidade e solidariedade, colaborando generosamente para o bem comum.

Os desafios, que hoje enfrentamos, requerem uma renovação deste espírito de colaboração, que produziu tantas coisas boas na história dos Estados Unidos. A complexidade, a gravidade e a urgência destes desafios exigem que ponhamos a render os nossos recursos e talentos e nos decidamos a apoiar-nos mutuamente, respeitando as diferenças e convicções de consciência.

Nesta terra, as várias denominações religiosas deram uma grande ajuda na construção e fortalecimento da sociedade. É importante que hoje, como no passado, a voz da fé continue a ser ouvida, porque é uma voz de fraternidade e de amor que procura fazer surgir o melhor em cada pessoa e em cada sociedade. Esta cooperação é um poderoso recurso na luta por eliminar as novas formas globais de escravidão, nascidas de graves injustiças que só podem ser superadas com novas políticas e novas formas de consenso social.

Penso aqui na história política dos Estados Unidos, onde a democracia está profundamente radicada no espírito do povo americano. Qualquer actividade política deve servir e promover o bem da pessoa humana e estar baseada no respeito pela dignidade de cada um. «Consideramos evidentes, por si mesmas, estas verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade» (Declaração de Independência, 4 de Julho de 1776). Se a política deve estar verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, segue-se que não pode estar submetida à economia e às finanças. É que a política é expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior: uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social. Não subestimo as dificuldades que isto implica, mas encorajo-vos neste esforço.

Penso também na marcha que Martin Luther King guiou de Selma a Montgomery, há cinquenta anos, como parte da campanha para conseguir o seu «sonho» de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. Aquele sonho continua a inspirar-nos. Alegro-me por a América continuar a ser, para muitos, uma terra de «sonhos»: sonhos que levam à acção, à participação, ao compromisso; sonhos que despertam o que há de mais profundo e verdadeiro na vida das pessoas. Nos últimos séculos, milhões de pessoas chegaram a esta terra perseguindo o sonho de construírem um futuro em liberdade. Nós, pessoas deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque outrora muitos de nós éramos estrangeiros. Digo-vos isto como filho de imigrantes, sabendo que também muitos de vós sois descendentes de imigrantes. Tragicamente, os direitos daqueles que estavam aqui, muito antes de nós, nem sempre foram respeitados. Por aqueles povos e as suas nações, desejo, a partir do coração da democracia americana, reafirmar a minha mais alta estima e consideração. Aqueles primeiros contactos foram muitas vezes tumultuosos e violentos, mas é difícil julgar o passado com os critérios do presente. Todavia, quando o estrangeiro no nosso meio nos interpela, não devemos repetir os pecados e os erros do passado. Devemos decidir viver agora o mais nobre e justamente possível e, de igual modo, formar as novas gerações para não virarem as costas ao seu «próximo» e a tudo aquilo que nos rodeia. Construir uma nação pede-nos para reconhecer que devemos constantemente relacionar-nos com os outros, rejeitando uma mentalidade de hostilidade para se adoptar uma subsidiariedade recíproca, num esforço constante de contribuir com o melhor de nós. Tenho confiança que o conseguiremos.

O nosso mundo está a enfrentar uma crise de refugiados de tais proporções que não se via desde os tempos da II Guerra Mundial. Esta realidade coloca-nos diante de grandes desafios e decisões difíceis. Também neste continente, milhares de pessoas sentem-se impelidas a viajar para o Norte à procura de melhores oportunidades. Porventura não é o que queríamos para os nossos filhos? Não devemos deixar-nos assustar pelo seu número, mas antes olhá-los como pessoas, fixando os seus rostos e ouvindo as suas histórias, procurando responder o melhor que pudermos às suas situações. Uma resposta que seja sempre humana, justa e fraterna. Devemos evitar uma tentação hoje comum: descartar quem quer que se demonstre problemático. Lembremo-nos da regra de ouro: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (Mt 7, 12).

Esta norma aponta-nos uma direcção clara. Tratemos os outros com a mesma paixão e compaixão com que desejamos ser tratados. Procuremos para os outros as mesmas possibilidades que buscamos para nós mesmos. Ajudemos os outros a crescer, como quereríamos ser ajudados nós mesmos. Em suma, se queremos segurança, demos segurança; se queremos vida, demos vida; se queremos oportunidades, providenciemos oportunidades. A medida que usarmos para os outros será a medida que o tempo usará para connosco. A regra de ouro põe-nos diante também da nossa responsabilidade de proteger e defender a vida humana em todas as fases do seu desenvolvimento.

Esta convicção levou-me, desde o início do meu ministério, a sustentar a vários níveis a abolição global da pena de morte. Estou convencido de que esta seja a melhor via, já que cada vida é sagrada, cada pessoa humana está dotada duma dignidade inalienável, e a sociedade só pode beneficiar da reabilitação daqueles que são condenados por crimes.

Recentemente, os meus irmãos bispos aqui nos Estados Unidos renovaram o seu apelo pela abolição da pena de morte. Não só os apoio, mas encorajo também todos aqueles que estão convencidos de que uma punição justa e necessária nunca deve excluir a dimensão da esperança e o objectivo da reabilitação.

Nestes tempos em que as preocupações sociais são tão importantes, não posso deixar de mencionar a Serva de Deus Dorothy Day, que fundou o Catholic Worker Movement. O seu compromisso social, a sua paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos estavam inspirados pelo Evangelho, pela sua fé e o exemplo dos Santos.

Quanto estrada percorrida neste campo em tantas partes do mundo! Quanto se fez nestes primeiros anos do terceiro milénio para fazer sair as pessoas da pobreza extrema! Sei que partilhais a minha convicção de que se tem de fazer ainda muito mais e de que, em tempos de crise e dificuldade económica, não se deve perder o espírito de solidariedade global. Ao mesmo tempo, desejo encorajar-vos a não esquecer todas as pessoas à nossa volta encastradas nas espirais da pobreza. Há necessidade de dar esperança também a elas. A luta contra a pobreza e a fome deve ser travada com constância nas suas múltiplas frentes, especialmente nas suas causas. Sei que hoje, como no passado, muitos americanos estão a trabalhar para enfrentar este problema.

Naturalmente uma grande parte deste esforço situa-se na criação e distribuição de riqueza. A utilização correcta dos recursos naturais, a aplicação apropriada da tecnologia e a capacidade de orientar devidamente o espírito empresarial são elementos essenciais duma economia que procura ser moderna, inclusiva e sustentável. «A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem comum» (Enc. Laudato si’, 129). Este bem comum inclui também a terra, tema central da Encíclica que escrevi, recentemente, para «entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum» (ibid., 3). «Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós» (ibid., 14).

Na encíclica Laudato si’, exorto a um esforço corajoso e responsável para «mudar de rumo» (ibid., 61) e evitar os efeitos mais sérios da degradação ambiental causada pela actividade humana. Estou convencido de que podemos fazer a diferença e não tenho dúvida alguma de que os Estados Unidos – e este Congresso – têm um papel importante a desempenhar. Agora é o momento de empreender acções corajosas e estratégias tendentes a implementar uma «cultura do cuidado» (ibid., 231) e «uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza» (ibid., 139). Temos a liberdade necessária para limitar e orientar a tecnologia (cf.ibid., 112), para individuar modos inteligentes de «orientar, cultivar e limitar o nosso poder» (ibid., 78) e colocar a tecnologia «ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral» (ibid., 112). A este respeito, confio que as instituições americanas de investigação e académicas poderão dar um contributo vital nos próximos anos.

Um século atrás, no início da I Grande Guerra que o Papa Bento XV definiu «massacre inútil», nascia outro americano extraordinário: o monge cisterciense Thomas Merton. Ele continua a ser uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas. Na sua autobiografia, deixou escrito: «Vim ao mundo livre por natureza, imagem de Deus; mas eu era prisioneiro da minha própria violência e do meu egoísmo, à imagem do mundo onde nascera. Aquele mundo era o retrato do Inferno, cheio de homens como eu, que amam a Deus e contudo odeiam-No; nascidos para O amar, mas vivem no medo de desejos desesperados e contraditórios». Merton era, acima de tudo, homem de oração, um pensador que desafiou as certezas do seu tempo e abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja. Foi também homem de diálogo, um promotor de paz entre povos e religiões.

Nesta perspectiva de diálogo, gostaria de saudar os esforços que se fizeram nos últimos meses para procurar superar as diferenças históricas ligadas a episódios dolorosos do passado. É meu dever construir pontes e ajudar, por todos os modos possíveis, cada homem e cada mulher a fazerem o mesmo. Quando nações que estiveram em desavença retomam o caminho do diálogo – um diálogo que poderá ter sido interrompido pelas mais válidas razões –, abrem-se novas oportunidades para todos. Isto exigiu, e exige, coragem e audácia, o que não significa irresponsabilidade. Um bom líder político é aquele que, tendo em conta os interesses de todos, lê o momento presente com espírito de abertura e sentido prático. Um bom líder político não cessa de optar mais por «iniciar processos do que possuir espaços» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 222-223).

Estar ao serviço do diálogo e da paz significa também estar verdadeiramente determinado a reduzir e, a longo prazo, pôr termo a tantos conflitos armados em todo o mundo. Aqui devemos interrogar-nos: Por que motivo se vendem armas letais àqueles que têm em mente infligir sofrimentos inexprimíveis a indivíduos e sociedade? Infelizmente a resposta, como todos sabemos, é apenas esta: por dinheiro; dinheiro que está impregnado de sangue, e muitas vezes sangue inocente. Perante este silêncio vergonhoso e culpável, é nosso dever enfrentar o problema e deter o comércio de armas.

Três filhos e uma filha desta terra, quatro indivíduos e quatro sonhos: Lincoln, a liberdade; Martin Luther King, a liberdade na pluralidade e não-exclusão; Dorothy Day, a justiça social e os direitos das pessoas; e Thomas Merton, capacidade de diálogo e abertura a Deus.

Quatro representantes do povo americano.

Concluirei a minha visita ao vosso país em Filadélfia, onde participarei no Encontro Mundial das Famílias. É meu desejo que, durante toda a minha visita, a família seja um tema recorrente. Como foi essencial a família na construção deste país! E como merece ainda o nosso apoio e encorajamento! E todavia não posso esconder a minha preocupação pela família, que está ameaçada, talvez como nunca antes, de dentro e de fora. As relações fundamentais foram postas em discussão, bem como o próprio fundamento do matrimónio e da família. Posso apenas repropor a importância e sobretudo a riqueza e a beleza da vida familiar.

Em particular quereria chamar a atenção para os membros da família que são os mais vulneráveis: os jovens. Para muitos deles anuncia-se um futuro cheio de tantas possibilidades, mas muitos outros parecem desorientados e sem uma meta, encastrados num labirinto sem esperança, marcado por violências, abusos e desespero. Os seus problemas são os nossos problemas. Não podemos evitá-los. É necessário enfrentá-los juntos, falar deles e procurar soluções eficazes em vez de ficar empantanados nas discussões. Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque lhes faltam possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família.

Uma nação pode ser considerada grande, quando defende a liberdade, como fez Lincoln; quando promove uma cultura que permita às pessoas «sonhar» com plenos direitos para todos os seus irmãos e irmãs, como procurou fazer Martin Luther King; quando luta pela justiça e pela causa dos oprimidos, como fez Dorothy Day com o seu trabalho incansável, fruto duma fé que se torna diálogo e semeia paz no estilo contemplativo de Thomas Merton.

Nestas notas, procurei apresentar algumas das riquezas do vosso património cultural, do espírito do povo americano. Faço votos de que este espírito continue a desenvolver-se e a crescer de tal modo que o maior número possível de jovens possa herdar e habitar numa terra que inspirou tantas pessoas a sonhar.

Deus abençoe a América!


Palavras pronunciadas pelo Papa, no terraço do Congresso

Bom-dia a todos vós! Agradeço a vossa recepção e a vossa presença. Agradeço às personagens mais importantes que aqui estão: as crianças. Quero pedir a Deus que vos abençoe: «Senhor, Pai de todos nós, abençoai este povo, abençoai a cada um deles, abençoai as suas famílias, concedei-lhes aquilo de que mais necessitam». Peço-vos, por favor, que rezeis por mim. E, se houver entre vós alguém que não crê ou não pode rezar, peço-lhe, por favor, que me deseje coisas boas. Obrigado! Muito obrigado! Deus abençoe a América!

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Visita ao Centro Caritativo da Paróquia de São Patrício e encontro com os sem-abrigo (24 de setembro)

É um prazer encontrar-vos. Bom dia! Vão ouvir dois sermões, um em castelhano e outro em inglês. A primeira palavra que quero dizer-vos é «obrigado». Obrigado por me acolherem e pelo esforço feito para que este encontro se realizasse.

Aqui recordo uma pessoa de quem gosto muito, que foi e é muito importante na minha vida. Serviu-me de apoio e fonte de inspiração. É uma pessoa a quem recorro quando estou com algum problema. Vós fazeis-me lembrar São José. Os vossos rostos falam-me do dele.

Na vida de São José, houve situações difíceis de enfrentar. Uma delas aconteceu quando Maria estava prestes a dar à luz, prestes a ter Jesus. Diz a Bíblia: «Quando eles se encontravam [em Belém], completaram-se os dias de [Maria] dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 6-7). A Bíblia é muito clara: não havia lugar para eles na hospedaria. Imagino José, com a sua esposa prestes a ter o filho, sem um tecto, sem casa, sem alojamento. O Filho de Deus entrou neste mundo como uma pessoa que não tem casa. O Filho de Deus entrou como um sem-abrigo. O Filho de Deus sabe o que é começar a vida sem um tecto. Podemos imaginar as perguntas que José se punha naquele momento: Como é possível? O Filho de Deus não tem um tecto para viver? Por que estamos sem casa? Por que estamos sem um tecto? São perguntas que muitos de vós podem pôr-se cada dia e pondes-vo-las. Como José, questionais-vos: Por que estamos sem um tecto, sem uma casa? E nós que temos tecto e lar, será bom que no-las ponhamos também: Por que estão sem casa estes nossos irmãos? Não têm tecto, porquê?

As perguntas de José perduram até hoje, acompanhando todos aqueles que, ao longo da história, viveram e estão sem uma casa.

José era um homem que se punha perguntas, mas sobretudo era um homem de fé. E foi a fé que permitiu a José encontrar a luz naquele momento que parecia uma escuridão completa; foi a fé que o sustentou nas dificuldades da sua vida. Pela fé, José soube seguir em frente, quando tudo parecia sem saída.

Perante situações injustas, dolorosas, a fé oferece-nos a luz que dissipa a escuridão. Como sucedeu com José, a fé abre-nos à presença silenciosa de Deus em cada vida, em cada pessoa, em cada situação. Ele está presente em cada um de vós, em cada um de nós.

Quero ser muito claro. Não há nenhum motivo social, moral ou doutro género que seja para aceitar a carência de habitação. São situações injustas, mas sabemos que Deus está a sofrê-las juntamente connosco, está a vivê-las ao nosso lado. Não nos deixa sozinhos.

Jesus não quis apenas ser solidário com cada pessoa, não quis apenas que ninguém sentisse ou vivesse a falta da sua companhia, da sua ajuda e do seu amor; mas Ele próprio Se identificou com todos aqueles que sofrem, que choram, que padecem qualquer tipo de injustiça. Ele di-lo claramente: «Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me» (Mt 25, 35).

É a fé que nos diz que Deus está convosco, que Deus está no meio de nós e a sua presença incita-nos à caridade; aquela caridade que nasce do apelo de um Deus que não cessa de bater à nossa porta, à porta de todos para nos convidar ao amor, à compaixão, a darmo-nos uns aos outros.

Jesus continua a bater às nossas portas, à nossa vida. Não o faz magicamente, nem o faz com truques, com vistosos placares ou com fogos-de-artifício. Jesus continua a bater à nossa porta no rosto do irmão, no rosto do vizinho, no rosto de quem vive junto de nós.

Queridos amigos, uma das formas mais eficazes de ajuda, temo-la na oração. A oração une-nos, faz-nos irmãos, abre-nos o coração e lembra-nos uma verdade maravilhosa que às vezes esquecemos. Na oração, todos aprendemos a dizer Pai, Papá, e quando dizemos Pai, Papá, encontramo-nos como irmãos. Na oração, não há ricos ou pobres; há filhos e irmãos. Na oração, não há pessoas de primeira classe ou segunda; há fraternidade.

É na oração que o nosso coração encontra força para não se tornar insensível, frio perante as situações de injustiça. Na oração, Deus continua a chamar-nos e incitar-nos à caridade.

Como nos faz bem rezar juntos! Como nos faz bem encontrarmo-nos naquele espaço onde nos olhamos como irmãos e nos reconhecemos necessitados do apoio uns dos outros. E hoje quero rezar convosco, quero unir-me a vós, porque preciso do vosso apoio e da vossa proximidade. Quero convidar-vos a rezar juntos uns pelos outros, uns com os outros. Assim, podemos prestar este apoio que nos ajuda a viver a alegria de Jesus que está no meio de nós. E que Jesus nos ajude a pôr remédio a esta injustiça que Ele conheceu primeiro: a de não ter casa. Aceitais rezar juntos? Eu começo em castelhano e vós continuais em inglês.

Pai nosso…

E antes de vos deixar, gostaria de dar-vos a bênção de Deus:

O Senhor vos abençoe e proteja;
O Senhor vos olhe com benevolência e mostre a sua bondade;
O Senhor vos olhe com amor e conceda a sua paz
(cf.Nm 6, 24-26).

Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!

***

Discurso no Encontro com os Bispos dos EUA - Catedral de São Mateus, Washington (23 de setembro)

Queridos Irmãos no Episcopado!

Antes de mais nada, quero enviar uma saudação à comunidade judaica, aos nossos irmãos judeus, que hoje celebram a festa doYom Kippur. Que o Senhor os abençoe com a paz e os faça avançar no caminho da santidade, segundo a Palavra d’Ele que ouvimos hoje: «Sede santos, porque Eu (…) sou santo» (Lv 19, 2).

Estou feliz por vos encontrar neste momento da missão apostólica que me trouxe ao vosso país e agradeço vivamente ao Cardeal Donald Wuerl e ao Arcebispo Joseph Edward Kurtz as amáveis palavras que me dirigiram em nome também de todos vós. Recebei os meus sentimentos de gratidão pela recepção e também pela generosa disponibilidade com que foi programada e organizada a minha estadia.

Ao abraçar com o olhar e o coração os vossos rostos de pastores, quero estreitar ao peito as Igrejas que levais amorosamente aos ombros e peço-vos para lhes assegurar que a minha solidariedade humana e espiritual envolve, por vosso intermédio, todo o povo de Deus espalhado por esta vasta terra.

O coração do Papa dilata-se para incluir a todos. Alargar o coração para testemunhar que Deus é grande no seu amor, é a essência da missão do Sucessor de Pedro, Vigário d’Aquele que na Cruz abraçou a humanidade inteira. Que nenhum membro do Corpo de Cristo e da nação americana se sinta excluído do abraço do Papa. Em todo o lado onde aflore aos lábios o verdadeiro nome de Jesus, lá ressoe também a voz do Papa para assegurar: «é o Salvador». Desde as vossas grandes cidades da costa leste até às planícies do midwest, desde o extremo sul até ao ilimitado oeste, onde quer que o vosso povo se reúna na assembleia eucarística, o Papa não seja um mero nome pronunciado rotineiramente, mas uma companhia palpável empenhada a sustentar a voz que se eleva do coração da Esposa: «Vinde, Senhor!»

Quando uma mão se estende para fazer o bem ou tornar próximo o amor de Cristo, para limpar uma lágrima ou fazer companhia a alguém na solidão, para indicar a estrada a um extraviado ou reanimar um coração já despedaçado, para se inclinar sobre uma pessoa caída ou ensinar um sedento da verdade, para oferecer o perdão ou guiar para um novo começo em Deus... sabei que o Papa vos acompanha, o Papa vos sustenta e, sobre a vossa mão, apoia também ele a sua já velha e enrugada mas, por graça de Deus, ainda capaz de sustentar e encorajar.

A minha primeira palavra é de acção de graças a Deus pelo dinamismo do Evangelho que consentiu o notável crescimento da Igreja de Cristo nestas terras e permitiu a generosa contribuição que ela ofereceu, e continua a oferecer, à sociedade norte-americana e ao mundo. Vejo com vivo apreço e agradeço comovido a vossa generosidade e solidariedade com a Sé Apostólica e com a evangelização em muitas partes atribuladas do mundo. Alegro-me com o indómito empenho da Igreja em prol da causa da vida e da família, motivo saliente desta minha visita. Sigo atentamente o esforço enorme feito para a recepção e integração dos imigrantes, que continuam a olhar para a América com a visão dos peregrinos que chegaram à procura dos seus promissores recursos de liberdade e prosperidade. Admiro a canseira com que levais por diante a missão educativa nas vossas escolas de todos os níveis e a obra caritativa nas vossas numerosas instituições. São actividades realizadas frequentemente sem qualquer estímulo ou apoio e, em todo o caso, mantidas heroicamente com o óbolo dos pobres, porque tais iniciativas derivam de um mandato sobrenatural a que não é lícito desobedecer. Estou consciente da coragem com que enfrentastes momentos obscuros do vosso percurso eclesial, sem temer autocríticas nem vos poupardes a humilhações e sacrifícios, sem ceder ao temor de vos despojardes de quanto é secundário, contanto que se recuperasse a credibilidade e a confiança requerida aos Ministros de Cristo, como o espera a alma do vosso povo singular. Sei quanto vos pesou a ferida dos últimos anos e acompanhei o vosso generoso esforço para curar as vítimas – conscientes de que, curando, também nós ficamos curados – e para continuar a agir a fim de que tais crimes nunca mais se repitam.

Falo-vos como Bispo de Roma, já na velhice, chamado por Deus, duma terra que também é americana, a fim de guardar a unidade da Igreja universal e encorajar na caridade o percurso de todas as Igrejas particulares para que progridam no conhecimento, na fé e no amor de Cristo. Lendo os vossos nomes e sobrenomes, observando as vossas feições, conhecendo a medida alta da vossa consciência eclesial e sabendo da veneração que sempre nutristes pelo Sucessor de Pedro, devo dizer que não me sinto um estrangeiro no meio de vós. De facto, sou oriundo duma terra – também ela vasta, ilimitada e por vezes informe – que, à semelhança da vossa, recebeu a fé da bagagem dos missionários. Conheço bem o desafio de semear o Evangelho no coração de homens, originários de mundos diferentes, muitas vezes endurecidos pela estrada dura percorrida antes de se estabelecerem. Não me é estranha a história da fadiga de implantar a Igreja entre planícies, montanhas, cidades e subúrbios dum território frequentemente inóspito, onde as fronteiras sempre são provisórias, as respostas óbvias não duram e a chave de entrada requer a capacidade de saber combinar o esforço épico dos pioneiros exploradores com a prosaica sabedoria e resistência dos sedentários que supervisionam o espaço alcançado. Como cantou um poeta vosso, «asas fortes e incansáveis», mas também a sabedoria de quem «conhece as montanhas».[1]

Não sou o único a falar-vos. A minha voz coloca-se em continuidade com tudo aquilo que os meus Antecessores vos deram. Com efeito, desde os alvores da «nação americana», quando após a revolução foi erecta a primeira diocese em Baltimore, a Igreja de Roma esteve sempre próxima de vós e nunca vos faltou a sua assistência constante e o seu encorajamento. Nas últimas décadas, visitaram-vos três dos meus venerados Antecessores, confiando-vos um notável património de doutrina ainda hoje actual, a que vos tendes inspirado para orientar os clarividentes programas pastorais com que é guiada esta amada Igreja.

Não é minha intenção traçar um programa ou delinear uma estratégia. Não vim para vos julgar ou dar lições. Confio plenamente na voz d’Aquele que «vos ensinará tudo» (Jo 14, 26). Consenti-me apenas de vos poder falar, com a liberdade do amor, como um irmão entre irmãos. Não me preme dizer-vos o que fazer, porque sabemos todos o que nos pede o Senhor. Prefiro antes voltar uma vez mais sobre aquela fadiga – antiga e sempre nova – de nos interrogarmos acerca dos caminhos a percorrer, dos sentimentos que se devem preservar enquanto se trabalha, do espírito com que agir. Sem a pretensão de ser exaustivo, partilho convosco algumas reflexões que considero oportunas para a nossa missão.

Somos bispos da Igreja, pastores constituídos por Deus para apascentar o seu rebanho. A nossa maior alegria é ser pastores, nada mais do que pastores, de coração indiviso e entrega irreversível de nós mesmos. É preciso guardar esta alegria, não deixando que no-la roubem. O maligno ruge como leão procurando devorá-la, desgastando assim tudo aquilo que somos chamados a ser, não para nós mesmos, mas o oferecer em dom e ao serviço do «Pastor das nossas almas» (cf. 1 Pd 2, 25).

A essência da nossa identidade deve ser procurada no rezar com assiduidade, no pregar (Act 6, 4) e no apascentar (Jo 21, 15-17;Act 20, 28-31).

Não uma oração qualquer, mas a união familiar com Cristo, durante a qual cruzemos diariamente o nosso olhar com o d’Ele para ouvir, dirigida a nós, a sua pergunta: «Quem é minha mãe? Quem são os meus irmãos?» (cf. Mc 3, 31-34). E poder-Lhe responder serenamente: «Senhor, aqui está a tua Mãe, aqui estão os teus irmãos! Entrego-os a Ti, são aqueles que me confiaste». É de tal confidência com Cristo que se alimenta a vida do pastor.

Não uma pregação de doutrinas complicadas, mas o anúncio jubiloso de Cristo, morto e ressuscitado por nós. O estilo da nossa missão suscite em todos os nossos ouvintes a experiência do «por nós» deste anúncio: a Palavra dê sentido e plenitude a cada fragmento das suas vidas, os Sacramentos nutram-nos com aquele alimento que não está ao alcance deles, a proximidade do pastor desperte neles a saudade do abraço do Pai. Velai para que o rebanho encontre sempre no coração do pastor aquela reserva de eternidade que, afanosamente mas em vão, procura nas coisas do mundo. Encontre sempre nos vossos lábios o apreço pela capacidade de fazer e construir, na liberdade e na justiça, a prosperidade de que é pródiga esta terra. Mas não falte a coragem serena de confessar que «é preciso trabalhar, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27).

Não se apascentar a si mesmo, mas saber esconder-se, diminuir, descentralizar-se, para alimentar de Cristo a família de Deus. Velar indomitamente, subindo alto para abarcar, com o olhar de Deus, o rebanho que só a Ele pertence. Elevar-se à altura da cruz de seu Filho, o único ponto de vista que abre ao pastor o coração do seu rebanho.

Não olhar para baixo no próprio eu, mas sempre para os horizontes de Deus, que ultrapassam tudo o que nós somos capazes de prever ou planificar. Velar também sobre nós para fugirmos da tentação do narcisismo, que cega os olhos do pastor, torna irreconhecível a sua voz, e estéril o seu gesto. Nos múltiplos caminhos que se abrem à vossa solicitude pastoral, lembrai-vos de conservar indelével o núcleo que unifica todas as coisas: «a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 31-45).

Certamente é útil ao bispo possuir a clarividência do líder e a esperteza do administrador, mas decaímos inexoravelmente quando confundimos a potência da força com a força da impotência, através da qual Deus nos redimiu. Ao bispo, é necessária a lúcida percepção da batalha entre a luz e as trevas, que se combate neste mundo. Ai de nós, porém, se fizermos da cruz um vexilo de lutas mundanas, ignorando que a condição da vitória duradoura é deixar-se trespassar e esvaziar-se de si mesmo (Flp 2, 1-11).

Não nos é alheia a angústia dos primeiros Onze, fechados dentro das próprias paredes, atónitos e consternados, habitados pelo susto das ovelhas dispersas porque o Pastor fora ferido. Mas sabemos que nos foi dado um espírito de coragem e não de timidez. Por isso, não nos é lícito deixar paralisar pelo medo.

Bem sei que são numerosos os vossos desafios, muitas vezes é hostil o campo onde semeais e não são poucas as tentações de fechar-se, no recinto dos medos, a lenir as feridas, recordando um tempo que não volta e planificando respostas duras às resistências já ásperas.

E, todavia, somos defensores da cultura do encontro. Somos sacramentos vivos do abraço entre a riqueza divina e a nossa pobreza. Somos testemunhas do abaixamento e condescendência de Deus que Se antecipa, no amor, à nossa primeira resposta.

O diálogo é o nosso método, não por astuciosa estratégia, mas por fidelidade Àquele que nunca Se cansa de passar e repassar pelas praças dos homens até às cinco horas da tarde a fim de lhes propor o seu convite de amor (Mt 20, 1-16).

Por isso, o caminho a seguir é o diálogo: diálogo entre vós, diálogo nos vossos presbitérios, diálogo com os leigos, diálogo com as famílias, diálogo com a sociedade. Não me cansarei jamais de vos encorajar a dialogar sem medo. Quanto mais rico for o património que tendes para partilhar desassombradamente, tanto mais eloquente há-de ser a humildade com que o deveis oferecer. Não tenhais medo de efectuar o êxodo que é necessário em cada diálogo autêntico. Caso contrário, não é possível entender as razões do outro, nem compreender profundamente que o irmão que devemos encontrar e resgatar, com a força e a proximidade do amor, conta mais do que as posições que, apesar de certezas autênticas, julgamos distantes das nossas. A linguagem dura e belicosa da divisão não fica bem nos lábios do pastor, não tem direito de cidadania no seu coração e, embora de momento pareça garantir uma aparente hegemonia, só o fascínio duradouro da bondade e do amor é que permanece verdadeiramente convincente.

É preciso deixar que ressoe perenemente no nosso coração a palavra do Senhor: «Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito» (Mt 11, 29). O jugo de Jesus é jugo de amor e, por isso, é premissa de restauração. Às vezes pesa-nos a solidão das nossas fadigas e carregamos de tal modo o jugo que já não nos recordamos de o ter recebido do Senhor. Parece-nos apenas nosso e, consequentemente, arrastamo-nos como bois cansados no campo árido, ameaçados pela sensação de ter trabalhado em vão, esquecidos da plenitude de restauração ligada indissoluvelmente Àquele que nos fez a promessa.

Aprender de Jesus, melhor ainda, aprender Jesus manso e humilde; entrar na sua mansidão e humildade através da contemplação do seu agir. Introduzir as nossas Igrejas e o nosso povo, muitas vezes esmagado pela rígida ansiedade de sucesso, na suavidade do jugo do Senhor. Recordar que a identidade da Igreja de Jesus é assegurada, não por um «fogo do céu que consuma» (cf. Lc 9, 54), mas pelo calor secreto do Espírito que «sara quanto é moléstia, o que há de dureza abranda, endireita o desvairado».

A grande missão que o Senhor nos confia, realizamo-la em comunhão, de forma colegial. O mundo já está tão dilacerado e dividido; a fragmentação está presente por todo o lado. Por isso a Igreja, «túnica inconsútil do Senhor», não pode deixar-se desagregar, tornar-se facção ou objecto de disputa.

A nossa missão episcopal é, primariamente, a de cimentar a unidade, cujo conteúdo é determinado pela Palavra de Deus e pelo único Pão do Céu, com os quais cada uma das Igrejas que nos estão confiadas permanece Católica, porque aberta e em comunhão com todas as Igrejas particulares e com a de Roma que «preside na caridade». Portanto, é um imperativo velar por tal unidade, guardá-la, favorecê-la, testemunhá-la como sinal e instrumento que, para além de qualquer barreira, une nações, raças, classes, gerações.

O Ano Santo da Misericórdia, já iminente, ao introduzir-nos na profundidade inexaurível do Coração divino onde não habita qualquer divisão, seja para todos uma ocasião privilegiada para reforçar a comunhão, aperfeiçoar a unidade, reconciliar as diferenças, perdoar-se uns aos outros e superar qualquer facção, de modo que assim brilhe a vossa luz como «a cidade situada sobre um monte» (Mt 5, 14).

Este serviço à unidade é particularmente importante para a vossa amada nação, cujos vastíssimos recursos materiais e espirituais, culturais e políticos, históricos e humanos, científicos e tecnológicos impõem responsabilidades morais consideráveis num mundo transtornado que fadigosamente procura novos equilíbrios de paz, prosperidade e integração. Deste modo faz parte essencial da vossa missão oferecer aos Estados Unidos da América o fermento humilde e poderoso da comunhão. Saiba a humanidade que o facto de ser habitada pelo «sacramento de unidade» (Lumen gentium,1) é garantia de que o seu destino não é o abandono e a desagregação.

E tal testemunho é um farol que não pode apagar-se. De facto, na fita escuridão da vida, os homens precisam de se deixar guiar pela sua luz, para terem a certeza do porto que os espera, estarem seguros de que as suas barcas não se despedaçarão contra os escolhos, nem acabarão à mercê das ondas. Por isso, Irmãos, encorajo-vos a enfrentar os problemas desafiadores do nosso tempo. No fundo de cada um deles, está sempre a vida como dom e responsabilidade. O futuro da liberdade e dignidade da nossa sociedade depende da forma como soubermos responder a tais desafios.

A vítima inocente do aborto, as crianças que morrem de fome ou debaixo das bombas, os imigrantes que acabam afogados em busca dum amanhã, as pessoas idosas ou os doentes que olhamos sem interesse, as vítimas do terrorismo, das guerras, da violência e do narcotráfico, o meio ambiente devastado por uma relação predatória do homem com a natureza… em tudo isto está sempre em jogo o dom de Deus, do qual somos administradores nobres mas não patrões. Por conseguinte, não é lícito iludir ou silenciar. De importância não menor é o anúncio do Evangelho da família que, na iminente Jornada Mundial das Famílias, em Filadélfia, terei ocasião de proclamar com força juntamente convosco e a Igreja inteira.

Estes aspectos irrenunciáveis da missão da Igreja pertencem ao núcleo daquilo que nos foi transmitido pelo Senhor. Por isso, temos o dever de os guardar e comunicar, mesmo quando o sentimento do tempo se torna impermeável e hostil a tal mensagem (Evangelii gaudium, 34-39). Encorajo-vos a oferecer, com os instrumentos e a criatividade do amor e com a humildade da verdade, tal testemunho. Este precisa não só de proclamações e anúncios externos, mas também de conquistar espaço no coração dos homens e na consciência da sociedade.

Para isso, é muito importante que a Igreja nos Estados Unidos seja também um lar humilde que atrai os homens pelo fascínio da luz e o calor do amor. Como pastores, conhecemos bem a escuridão e o frio que ainda existe neste mundo, a solidão e o abandono de tantas pessoas – mesmo onde abundam os recursos de comunicação e as riquezas materiais – , conhecemos também o medo face à vida, os desesperos e as suas múltiplas fugas.

Por isso, só uma Igreja que saiba reunir à volta do fogo do lar permanece capaz de atrair. Certamente não qualquer fogo, mas o que se acendeu na manhã de Páscoa. É o Senhor ressuscitado que continua a interpelar os pastores da Igreja através da voz tímida de muitos irmãos: «Tendes alguma coisa para comer?» Torna-se necessário reconhecer a sua voz, como fizeram os Apóstolos na margem do mar de Tiberíades (Jo 21, 4-12). E mais decisivo ainda se torna render-se à certeza de que as brasas da sua presença, acesas no fogo da paixão, precedem-nos e jamais se apagarão. Definhando tal certeza, corre-se o risco de nos tornarmos, ao contrário, cultores de cinzas e não guardiões e dispensadores da verdadeira luz e do calor que pode aquecer o coração (Lc 24, 32).

Antes de concluir, permiti ainda que vos faça duas recomendações que me estão a peito. A primeira tem a ver com a vossa paternidade episcopal. Sede pastores próximos das pessoas, pastores próximos e servidores. Esta proximidade manifeste-se de forma especial para com os vossos sacerdotes. Acompanhai-os para continuarem a servir Cristo com coração indiviso, porque só a plenitude enche os ministros de Cristo. Peço-vos, portanto, que não os deixeis contentar-se com meias medidas. Cuidai das suas fontes espirituais, para que não caiam na tentação dos notários e burocratas, mas sejam expressão da maternidade da Igreja que gera e faz crescer os seus filhos. Velai para que não se cansem de se levantar para responder a quem bate à porta de noite, mesmo quando se pensa já ter direito ao repouso (Lc 11, 5-8). Treinai-os a fim de estarem preparados para deter-se, debruçar-se, deitar bálsamo, tomar a seu cuidado e gastar-se a favor de quem, «por acaso», se encontrou despojado de quanto julgava possuir (Lc 10, 29-37).

A minha segunda recomendação diz respeito aos imigrantes. Peço desculpa se falo em causa que de certo modo vos é própria. A Igreja dos Estados Unidos conhece, como poucas, as esperanças dos corações dos peregrinos. Desde sempre aprendestes a sua língua, sustentastes a sua causa, integrastes as suas contribuições, defendestes os seus direitos, favorecestes a sua busca da prosperidade, conservastes acesa a chama da sua fé. Mesmo agora nenhuma instituição americana faz mais pelos imigrantes do que as vossas comunidades cristãs. Neste momento, tendes esta longa vaga de imigração latina que investe muitas das vossas dioceses. Não só como Bispo de Roma, mas também como pastor vindo do Sul, sinto a necessidade de vos agradecer e encorajar. Talvez não vos seja fácil ler a sua alma; talvez vos sintais desafiados pela sua diversidade. Sabei, no entanto, que também possuem recursos para partilhar. Por isso, acolhei-os sem medo. Oferecei-lhes o calor do amor de Cristo e decifrareis o mistério do seu coração. Estou certo de que, mais uma vez, estas pessoas enriquecerão a América e a sua Igreja.

Deus vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde! Obrigado!


[1]«Quando eu era jovem, / tinha asas fortes e incansáveis, / mas não conhecia as montanhas. / Quando cheguei à velhice, / conheci as montanhas, / mas as asas cansadas já não acompanharam a visão. / O génio é sabedoria e juventude» (Edgard Lee Masters, Antologia de Spoon River).

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Homilia da Santa Missa e Canonização do Bem-aventurado Padre Junípero Serra - Santuário Nacional da Imaculada Conceição, Washington (23 de setembro)


«Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!» (Flp 4, 4). Um convite que toca fortemente a nossa vida. Alegrai-vos – diz-nos São Paulo, com a força quase duma ordem. Um convite no qual ecoa o desejo que todos experimentemos de uma vida plena, uma vida que tenha sentido, uma vida jubilosa. É como se Paulo tivesse a capacidade de ouvir cada um dos nossos corações e desse voz àquilo que sentimos, àquilo que vivemos. Há algo dentro de nós que nos convida à alegria, não nos contentando com paliativos que sempre procuram tranquilizar-nos.

Mas, por outro lado, vivemos as tensões da vida diária. Muitas são as situações que parecem pôr em dúvida este convite. A dinâmica, a que muitas vezes estamos sujeitos, parece levar-nos a uma resignação triste que pouco a pouco se vai transformando num hábito com uma consequência letal: anestesiar o coração.

Não queremos que a resignação seja o motor da nossa vida; ou será que queremos? Não queremos que a rotina se apodere da nossa vida; ou sim? Por isso podemos questionar-nos: como proceder para que não se anestesie o nosso coração? Como aprofundar a alegria do Evangelho nas várias situações da nossa vida?

Jesus disse aos discípulos de então e repete-o a nós: Ide! Anunciai! A alegria do Evangelho só se experimenta, conhece e vive, dando-a, dando-se.

O espírito do mundo convida-nos ao conformismo, à comodidade. Perante este espírito mundano «é necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo» (Enc. Laudato si’, 229); a responsabilidade de anunciar a mensagem de Jesus. Porque a fonte da nossa alegria situa-se naquele «desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 24). Ide ter com todos, a fim de anunciar ungindo e ungir anunciando. A isto mesmo, nos convida hoje o Senhor dizendo:

A alegria, o cristão experimenta-a na missão: ide ter com os povos de todas as nações.

A alegria, o cristão encontra-a num convite: ide e anunciai.

A alegria, o cristão renova-a e actualiza-a com uma vocação: ide e ungi.

Jesus envia-vos a todas as nações, a todos os povos. E, neste «todos» de há dois mil anos, estávamos incluídos também nós. Jesus não dá uma lista selectiva com aqueles a quem se deve ir e a quem não ir, com aqueles que são dignos, ou não, de receber a sua mensagem e a sua presença. Pelo contrário, abraçou sempre a vida tal qual Lhe aparecia: com cara de tristeza, fome, doença, pecado; com cara de ferimentos, sede, cansaço; com cara de dúvidas e de fazer piedade. Longe de esperar uma vida embelezada, decorada, maquiada, abraçou-a como a encontrava; mesmo que fosse uma vida que muitas vezes se apresentava arruinada, suja, destroçada. A todos – disse Jesus – a todos, ide e anunciai; a toda esta vida, tal como é e não como gostaríamos que fosse: ide e abraçai no meu nome. Ide pelas encruzilhadas dos caminhos, ide... anunciar, sem medo, sem preconceitos, sem superioridade nem purismos; a todos aqueles que perderam a alegria de viver, ide anunciar o abraço misericordioso do Pai. Ide ter com aqueles que vivem com o peso da tristeza, do fracasso, da sensação duma vida destroçada, e anunciai a loucura dum Pai que procura ungi-los com o óleo da esperança, da salvação. Ide anunciar que os erros, as ilusões enganadoras, as incompreensões não têm a última palavra na vida duma pessoa. Ide com o óleo que cura as feridas e restabelece o coração.

A missão nunca nasce dum projecto perfeitamente elaborado ou dum manual bem estruturado e programado; a missão nasce sempre duma vida que se sentiu procurada e curada, encontrada e perdoada. A missão nasce de se fazer uma, duas e mais vezes a experiência da unção misericordiosa de Deus.

A Igreja, o povo santo de Deus, sabe percorrer as estradas poeirentas da história, frequentemente permeadas por conflitos, injustiças e violência, para ir encontrar os seus filhos e irmãos. O santo povo fiel de Deus não teme o erro; teme o fechamento, a cristalização em elite, o agarrar-se às próprias seguranças. Sabe que o fechamento, nas suas múltiplas formas, é a causa de tantas resignações.

Por isso saiamos, vamos oferecer a todos a vida de Jesus Cristo (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 49). O povo de Deus sabe envolver-se, porque é discípulo d'Aquele que Se ajoelhou diante dos seus, para lhes lavar os pés (cf. ibid., 24).

Hoje encontramo-nos aqui, podemos encontrar-nos aqui, porque houve muitos que tiveram a coragem de responder a esta chamada; muitos que acreditaram que «na doação a vida se fortalece, e se enfraquece no comodismo e no isolamento» (Documento de Aparecida, 360). Somos filhos da ousadia missionária de muitos que preferiram não se fechar «nas estruturas que nos dão uma falsa protecção (...), nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 49). Somos devedores duma Tradição, duma cadeia de testemunhas que tornaram possível que a Boa Nova do Evangelho continue a ser, de geração em geração, Nova e Boa.

E hoje recordamos uma daquelas testemunhas que souberam testemunhar nestas terras a alegria do Evangelho: Padre Junípero Serra. Soube viver aquilo que é «a Igreja em saída», esta Igreja que sabe sair e ir pelas estradas, para partilhar a ternura reconciliadora de Deus. Soube deixar a sua terra, os seus costumes, teve a coragem de abrir sendas, soube ir ao encontro de muitos aprendendo a respeitar os seus costumes e as suas características.

Aprendeu a gerar e acompanhar a vida de Deus nos rostos daqueles que encontrava, tornando-os seus irmãos. Junípero procurou defender a dignidade da comunidade nativa, protegendo-a de todos aqueles que abusaram dela; abusos que hoje continuam a encher-nos de pesar, especialmente pela dor que provocam na vida de tantas pessoas.

Escolheu um lema que inspirou os seus passos e plasmou a sua vida: «Sempre avante». Soube-o dizer, mas sobretudo viver. Esta foi a maneira que Junípero encontrou para viver a alegria do Evangelho, para que não se anestesiasse o seu coração. Foi sempre avante, porque o Senhor espera; sempre avante, porque o irmão espera; sempre avante por tudo aquilo que ainda tinha para viver; foi sempre avante. Como ele então, possamos também nós hoje dizer: sempre avante.

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Discurso do Papa na cerimônia de Boas-vindas - Casa Branca, Washington, D.C. (23 de setembro)

Senhor Presidente!

Obrigado pela saudação de boas-vindas que me dirigiu em nome de todos os americanos. Como filho duma família de emigrantes, sinto-me feliz por ser hóspede nesta nação, que foi construída em grande parte por famílias semelhantes. Olho com alegria para estes dias de encontro e diálogo, em que espero perscrutar e compartilhar muitos dos sonhos e esperanças do povo americano.

Na minha visita, terei a honra de me dirigir ao Congresso, onde espero, como irmão deste país, dizer uma palavra de encorajamento a todos aqueles que são chamados a guiar o futuro político da nação na fidelidade aos seus princípios fundadores. Irei também a Filadélfia, para o VIII Encontro Mundial das Famílias, cuja finalidade é celebrar e apoiar as instituições do matrimónio e da família, num momento crítico da história da nossa civilização.

Senhor Presidente, os católicos americanos, juntamente com seus concidadãos, estão comprometidos na construção duma sociedade que seja verdadeiramente tolerante e inclusiva, na defesa dos direitos dos indivíduos e das comunidades, e na rejeição de qualquer forma de discriminação injusta. Juntamente com muitas outras pessoas de boa vontade desta grande democracia, eles esperam que os esforços por construir uma sociedade justa e sabiamente ordenada respeitem as suas preocupações mais profundas e os seus direitos inerentes à liberdade religiosa. Esta liberdade permanece como uma das conquistas mais valiosas da América. E, como os meus irmãos bispos dos Estados Unidos nos lembraram, todos somos chamados a vigiar, precisamente como bons cidadãos, por preservar e defender tal liberdade de tudo o que a possa pôr em perigo ou comprometer.

Senhor Presidente, considero prometedor o facto de Vossa Excelência ter vindo a propor uma iniciativa para a redução da poluição do ar. Vista a sua urgência, parece-me claro que a mudança climática já não pode ser um problema deixado à geração futura. A história colocou-nos num momento crucial quanto ao cuidado da nossa «casa comum». Mas estamos ainda a tempo de empreender mudanças que assegurem «um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar» (Enc. Laudato si’, 13). São mudanças que exigem de nós um reconhecimento sério e responsável do tipo de mundo que podemos deixar não só aos nossos filhos, mas também aos milhões de pessoas sujeitas a um sistema que as tem transcurado. A nossa casa comum foi parte deste grupo de excluídos que brada ao céu e que hoje bate com força às portas de nossas casas, cidades, sociedade. Retomando as sábias palavras do Reverendo Martin Luther King, podemos dizer que estivemos em falta quanto a alguns compromissos e, agora, chegou o momento de os honrar.

Pela fé, sabemos que «o Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum» (ibid., 13). Como cristãos animados por esta certeza, procuramos comprometer-nos neste cuidado consciente e responsável da nossa casa comum.

Os esforços feitos recentemente para reconciliar relações que haviam sido rompidas e para a abertura de novas vias de cooperação dentro da família humana constituem passos em frente no caminho da reconciliação, da justiça e da liberdade. Almejo que todos os homens e mulheres de boa vontade desta grande e próspera nação apoiem os esforços da comunidade internacional para proteger os mais vulneráveis no nosso mundo e promover modelos integrais e inclusivos de desenvolvimento, de modo que, em todo o lado, possam os nossos irmãos e irmãs conhecer as bênçãos da paz e da prosperidade que Deus deseja para todos os seus filhos.

Senhor Presidente, uma vez mais lhe agradeço a sua recepção e olho com confiança para estes dias no seu país. Deus abençoe a América!