Mons. Fernando Ocáriz: “A vitalidade da Igreja depende da abertura total ao Evangelho”

Entrevista com o Prelado do Opus Dei, Mons. Fernando Ocáriz, publicada pela revista Palabra

Mons. Fernando Ocáriz com Alfonso Riobó, o diretor da revista Palabra.

Alfonso Riobó // Revista Palabra

Após o falecimento de Dom Javier Echevarría, que dirigiu o Opus Dei desde 1994, em 23 de janeiro, foi eleito e nomeado novo Prelado pelo Papa Francisco o até então “número 2” da prelazia, o sacerdote espanhol Fernando Ocáriz Braña. Passadas pouco mais de duas semanas desde então, Mons. Ocáriz concedeu à revista Palabra esta entrevista.

O objetivo era dedicar boa parte da entrevista em aproximar o leitor de Mons. Fernando Ocáriz. O novo prelado do Opus Dei cumpriu fielmente o combinado, superando sua notável relutância em centrar a conversa em si mesmo. A reserva faz parte do seu caráter, assim como a sobriedade expressiva, ainda que não lhe faltem cordialidade nem abertura. No que se refere à sessão fotográfica, foi para ele um dever desagradável, mas assumido com bom humor.

A reserva faz parte do seu caráter, assim como a sobriedade expressiva, ainda que não lhe faltem cordialidade nem abertura.

O encontro ocorre na sede da Cúria da Prelazia do Opus Dei, onde viveram e trabalharam São Josemaria Escrivá, o Bem-Aventurado Álvaro del Portillo e Dom Javier Echevarría. Embora Fernando Ocáriz passasse ao primeiro plano do Governo da Obra em 1994, quando foi nomeado vigário geral (desde 2014, era vigário auxiliar), reside aqui há 50 anos, conhece cada detalhe da atividade do Opus Dei e atua em plena identificação com seu antecessores.

Agradecemos ao Prelado esta entrevista, a primeira desta duração, apenas duas semanas após sua eleição e nomeação em 23 de janeiro de 2017.

Primeiros anos

– O senhor nasceu em Paris em 1944, em uma família espanhola. Qual era o motivo de que morassem na França?

A guerra civil. Meu pai era militar do lado republicano. Nunca quis contar detalhes, mas, pelo que entendi, teve ocasião de salvar a pessoas, por sua posição de comandante. E dentro do próprio exército republicano acabou ficando em uma situação arriscada. Como não era partidário de Franco, pensou que convinha ir para a França, e aproveitou a proximidade de uma parte do exército à fronteira, e atravessou ali, através da Catalunha. Era veterinário militar, mas havia se dedicado sobretudo à pesquisa em biologia animal. Não era o que se poderia ser considerado um político, mas sim um militar e um cientista.

– O senhor conserva alguma lembrança dessa época?

O que sei dessa época é por tê-lo ouvido contar. Quando a família fugiu para a França, eu ainda não havia nascido, e nem mesmo minha sétima irmã, anterior a mim (não cheguei a conhecer minhas duas irmãs mais velhas, que morreram muito novas, bem antes que eu nascesse). Nós dois mais novos nascemos em Paris. Eu nasci em outubro, justamente um mês após a libertação por parte das tropas americanas e francesas do general Leclerc.

– Se falava de política em casa?

Não tenho lembranças de Paris. Já na Espanha, se falava pouco: eram mais comentários soltos e breves, não favoráveis, mas também não violentos, ao regime de Franco. De qualquer forma, devemos reconhecer que, a partir dessa época, meu pai e a família tiveram uma vida pacífica: meu pai foi readmitido mais adiante em um centro oficial de pesquisa, dependente do Ministério da Agricultura, em Madri, onde trabalhou até se aposentar.

– E a religião? O senhor recebeu a fé da família?

Em casa aprendi o básico da vida de piedade.

Recebi a fé, fundamentalmente, na família, sobretudo da minha mãe e da minha avó materna, que vivia conosco. Meu pai era uma pessoa muito boa, mas naquela época estava bastante afastado da religião. Com o tempo voltaria à prática religiosa, e chegou a ser supernumerário do Opus Dei. Em casa aprendi o básico da vida de piedade.

– De Paris, voltaram à Espanha.

Eu tinha então três anos, e só conservo uma vaga lembrança, como uma imagem gravada na memória, da viagem de trem de Paris a Madri.

– Em que colégio o senhor estudou?

Em Areneros, o colégio dos jesuítas. Fiquei ali até o final do ensino médio. Era um colégio bom e com uma disciplina bastante séria. Diferentemente do que ouvi contar de outros colégios da época, jamais vi um jesuíta bater em ninguém, nos oito anos em que estudei lá. É algo que me suscita agradecimento. Me lembro de vários professores, principalmente dos últimos dois anos. Por exemplo, no último ano, tivemos um professor de matemática leigo e pai de família, cujo sobrenome era Castillo Olivares, uma grande pessoa, a qual admirávamos muito.

O encontro com o Opus Dei

O senhor cursou Física em Barcelona. Qual foi o motivo da mudança?

Na verdade, fiz o primeiro ano da Universidade em Madri. Era o “seletivo”, que introduzia a todas as engenharias e faculdades de ciências. Só havia cinco disciplinas, comuns a todos esses cursos: Matemática, Física, Química, Biologia e Geologia. Éramos uma turma muito numerosa: vários grupos, cada um com mais de cem alunos.

Nesse primeiro ano, tive como professor de Matemática dom Francisco Botella [catedrático, sacerdote e um dos primeiros membros do Opus Dei]. Quando soube depois que eu era da Obra e que pensava estudar Física, ele me disse: “Por que você estuda Física?! Por que não Matemática? Se você quer ganhar dinheiro, torne-se engenheiro, mas se é porque se interessa pelas ciências, por que não estuda Matemática?”.

Quando fui para Barcelona já era membro do Opus Dei. Morei no Colégio Maior Monterols, onde compatibilizei os estudos de Física com a formação teológica e espiritual que recebem as pessoas que se incorporam à Obra.

Quando o senhor conheceu o Opus Dei?

Pelas conversas entre meus irmãos mais velhos e meus pais, eu tinha ouvido a expressão “Opus Dei” sendo muito pequeno. Mesmo que não tivesse ideia do que era, essa palavra me parecia familiar.

Ali se rezava, se estudava, se conversava e, entre uma coisa e outra, fui assimilando o espírito do Opus Dei.

Estando no Ensino Médio, fui a um centro da Obra que ficava na rua Padilla número 1, esquina com Serrano, e por isso se chamava “Serrano”: não existe mais. Fui poucas vezes. Gostava do ambiente e do que se dizia, mas já tínhamos atividades espirituais no colégio e talvez não compreendesse a necessidade. Também fui alguma vez jogar futebol com os garotos de “Serrano”.

Mais adiante, no verão de 1961, depois do ensino médio e antes da universidade, meu irmão mais velho, que trabalhava como engenheiro naval em um dos estaleiros de Cádiz, me convidou para passar algumas semanas com sua família. Havia um centro do Opus Dei muito próximo de sua casa, e comecei a frequentar. O diretor, que era engenheiro de armas navais e pertencia à marinha, me animava a aproveitar o tempo: até me deu um livro de química para estudar, coisa que eu jamais tinha feito nas férias! No centro do Opus Dei, se rezava, se estudava, se conversava e, entre uma coisa e outra, fui assimilando o espírito do Opus Dei.

Acabou me falando da possibilidade de ter vocação para a Obra. Eu reagi como fazem muitos, dizendo: “Não. E se for, só como meu irmão, que é pai de família”. Enrolei, até que me decidi. Lembro-me do momento preciso: estava ouvindo uma sinfonia de Beethoven. Naturalmente, não me decidi por causa da sinfonia, mas coincidiu que a estava ouvindo quando me decidi, depois de ter pensado e rezado muito. Após alguns dias voltei para Madri.

Mons. Ocáriz com uma família, em Roma.

Portanto, o senhor gosta de música?

Sim.

Qual é seu músico preferido?

Talvez Beethoven. Também outros: Vivaldi, Mozart…, mas se tivesse de escolher um, ficaria com Beethoven. A verdade é que faz anos que ouço pouco música. Não sigo um plano preciso.

O senhor se importaria de descrever essa decisão de entrega a Deus?

Não houve um momento preciso de “encontro” com Deus. Foi uma coisa natural, gradual, desde que era pequeno e me ensinaram a rezar.

Não houve um momento preciso de “encontro” com Deus. Foi uma coisa natural, gradual, desde que era pequeno e me ensinaram a rezar. De uma maneira progressiva fui me aproximando de Deus no colégio: tínhamos a oportunidade de receber a comunhão diariamente, e penso que isso ajudou na decisão posterior de me fazer da Obra fosse relativamente rápida. Pedi a admissão na Obra quando faltava um mês para cumprir 17 anos, e por isso me incorporei já com 18.

O que o senhor poderia contar dos anos em Barcelona?

Estive em Barcelona por cinco anos, dois como residente nesse centro de estudos e três como parte da direção do Colégio Maior. Estudei os outros quatro anos de curso, e depois continuei dando aulas na Faculdade como ajudante por mais um ano. Todas as lembranças de Barcelona são maravilhosas: de amizade, estudo… Uma lembrança especial são as visitas que fazíamos aos pobres e doentes, como é tradição na Obra. Muitos dos universitários que frequentávamos percebíamos como o contato com a pobreza, com a dor, ajuda a relativizar os próprios problemas.

Quando o senhor conheceu São Josemaria Escrivá? Que impressão teve dele?

Foi em 23 de agosto de 1963, em Pamplona, no Colégio Maior Belagua, durante uma atividade formativa nas férias. Tivemos uma tertúlia muito longa com ele, de, pelo menos, uma hora e meia. Tive uma impressão ótima. Me lembro de que, depois, muitos de nós comentamos que se deveria ver ao Padre – era assim que chamávamos o Fundador – muito mais frequentemente.

Sua simpatia e sua naturalidade [de São Josemaria] chamavam a atenção: não era uma pessoa solene, mas natural, de bom humor, que, muitas vezes contava histórias, e, ao mesmo tempo, dizia coisas muito profundas.

Sua simpatia e sua naturalidade chamavam a atenção: não era uma pessoa solene, mas natural, de bom humor, que, muitas vezes contava histórias, e, ao mesmo tempo, dizia coisas muito profundas. Era uma síntese admirável: dizer coisas profundas com simplicidade.Tornei a vê-lo pouco tempo depois, acredito que no mês seguinte. Fui passar alguns dias em Madri, e coincidiu que o Padre estava em Molinoviejo, por isso fomos de vários lugares para encontrá-lo. Em nenhuma dessas ocasiões cheguei a falar pessoalmente com ele. Depois, aqui em Roma, claro: muitas vezes…

Cinquenta anos em Roma

O senhor se muda para Roma em 1967…

Vim para fazer os estudos teológicos e também consegui uma bolsa do governo italiano para pesquisador de Física durante o período de 1967-1968, na Universidade La Sapienza. Na verdade, pude fazer pouca pesquisa, o indispensável exigido pela bolsa. Quando vim, não tinha me proposto seguir uma carreira acadêmica em Teologia. As coisas foram caminhando por si só. Não tinha planos nesse sentido.

Sua ordenação sacerdotal foi em 1971.

Sim. Me ordenei em 15 de agosto de 1971, na basílica de São Miguel, em Madri. O bispo que me ordenou foi Dom Marcelo González Martín, naquele momento, bispo de Barcelona, um pouco antes de se mudar para Toledo.

Diziam, de brincadeira, que éramos quatro franceses na turma: dois eram franceses “completos”, Franck Touzet e Jean-Paul Savignac. Depois vinham Agustín Romero, espanhol que morava na França há muitos anos, e, finalmente, eu, que tinha nascido em Paris e vivi três anos lá.

Não posso dizer que tivesse sentido a chamada ao sacerdócio desde sempre. Quando vim a Roma manifestei que, em princípio, estava disposto, e depois disse abertamente a São Josemaria: “Padre, estou disposto a me ordenar”. Ele me pegou pelo braço e me disse, entre outras coisas, mais ou menos isso: “Meu filho, me dás muita alegria, mas quando for o momento tens de fazê-lo com total liberdade”. Essa conversa foi na Galleria della Campana, acho que ao terminar alguma das tertúlias que tínhamos então com ele com muita frequência.

Após a ordenação, o senhor recebeu alguma tarefa pastoral na Espanha?

Não. Três dias após a ordenação celebrei a primeira missa solene na basílica de São Miguel, e imediatamente voltei para Roma. Tinha colaborado antes nas atividades de apostolado com jovens em Orsini, um centro para universitários em Roma, dando aulas de formação cristã e participando de outras atividades.

Sendo já sacerdote, em Roma, colaborei vários anos na Paróquia do Tiburtino (San Giovanni Battista in Collatino), e depois na de Sant’Eugenio. Atendi sacerdotalmente vários centros da Obra, tanto de mulheres quanto de homens, e trabalhava aqui nos escritórios da sede central. Enfim, uma trajetória normal.

Sabe-se que o senhor gosta de tênis. Quando começou a jogar?

Comecei o tênis relativamente cedo, em Barcelona. Me ensinou muito um italiano, Giorgio Carimati, agora sacerdote e idoso, que na época jogava tênis muito bem: foi quase profissional na Itália. Mas tive idas e vindas com o tênis, porque machuquei o cotovelo direito e, em algumas épocas, me dediquei à bicicleta. Agora procuro treinar: tento jogar todas as semanas, mas nem sempre é possível, pelo clima, pelas obrigações, etc.

O senhor joga partidas… “de verdade”, para ganhar?

Sim, claro. Quanto a ganhar, depende de com quem jogo.

O senhor gosta de ler?

O espírito do Opus Dei é o Evangelho posto na vida ordinária.

Sim, mas não tenho muito tempo… Não tenho um autor preferido. Li também clássicos. Por falta de tempos demorei anos para terminar alguns livros grandes: faz bastante tempo demorei um ano para acabar Guerra e paz. Tive que ler muito sobre Teologia, pois dei aulas até 1994, e para a Congregação para a Doutrina da Fé também tenho de estudar temas teológicos.

No campo teológico, o senhor estudou aspectos centrais do espírito do Opus Dei, como a filiação divina. Acha importante aprofundar nessas reflexões?

Já se fez muito neste campo. O que se tem de fazer é continuar, e sempre haverá de fazê-lo. O espírito do Opus Dei é, como costumava dizer o filósofo e teólogo Cornelio Fabro, “o Evangelho sine glossa [sem comentários]”. É o Evangelho posto na vida ordinária. Sempre se há de aprofundar mais.

Nesse sentido, não é que agora haja uma nova época, porque já se fez muitíssimo. Basta ler, por exemplo, os três livrões de Ernst Burkhart e Javier López que chamam Vida cotidiana y santidad.

Em um artigo desta revista, falando de Mons. Javier Echevarría, o senhor utilizou a expressão “fidelidade dinâmica”. O que significa?

A expressão “fidelidade dinâmica” não é original. São Josemaria afirmou expressamente: mudam os modos de dizer e de fazer, permanecendo intocável o núcleo, o espírito. Não é assunto de agora. Uma coisa é o espírito, e outra é a materialidade do funcionamento em coisas acidentais, que podem mudar ao longo do tempo.

A fidelidade não é pura repetição mecânica: é aplicar a mesma essência a diversas circunstâncias.

A fidelidade não é pura repetição mecânica: é aplicar a mesma essência a diversas circunstâncias. Muitas vezes, é preciso manter também o acidental, e outras vezes mudá-lo. Daí a importância do discernimento, sobretudo para conhecer qual é o limite entre o acidental e o essencial.

Mons. Fernando Ocáriz abraça o Papa Francisco em uma recente audiência.

Que parte lhe cabe no nascimento da Universidade Pontifícia da Santa Cruz?

Não tive nada a ver com o jurídico ou institucional. Simplesmente fui um dos primeiros professores. Fui professor do Colégio Romano da Santa Cruz durante vários anos, em parceria com a Universidade de Navarra e, desde 1980 até 1984, dei aulas na Pontifícia Universidade Urbaniana. Como tinha também as publicações necessárias, a autoridade da Santa Sé considerou minha qualificação adequada para entrar diretamente como professor ordinário. Fomos três que entramos como ordinários, nessas condições: Antonio Miralles, Miguel Ángel Tabet e eu.

Quem foram seus professores, no campo intelectual?

Na Filosofia, Cornelio Fabro e Carlos Cardona. Em Teologia, não saberia dizer um concreto. Por um lado, estão São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, e mais tarde Joseph Ratzinger. Mas destacaria especialmente São Josemaria Escrivá: em outro nível, logicamente, não acadêmico, mas sim por sua profundidade e originalidade. Se tivesse de escolher um no campo teológico, seria ele.

Lembranças de três papas

Quando o senhor conheceu São João Paulo II?

Em uma das reuniões multitudinárias com o clero no Vaticano, no início do seu pontificado. Depois o vi em várias ocasiões, e almocei com ele algumas vezes acompanhando Mons. Javier Echevarría e com três ou quatro outras pessoas.

Também almocei com ele outras duas vezes, por causa do trabalho na Congregação para a Doutrina da Fé.

Na primeira ocasião, tivemos uma reunião no apartamento pontifício em que estavam, além do Papa, o Secretário de Estado, o Substituto, o cardeal Ratzinger como Prefeito e três consultores. Depois de um bom tempo de reunião, fomos para a sala de jantar, e durante a refeição, cada um ia dando seu parecer, por ordem, sobre o assunto de que se tratava. Entretanto, tanto nesta vez quanto na segunda, o Papa basicamente escutava. No princípio pronunciou umas palavras de agradecimento por nossa presença, e em seguida disse ao cardeal Ratzinger que dirigisse a reunião, e, ao final, fez um resumo sintético e de apreciação de conjunto do que tinha ouvido.

Creio que foi na segunda ocasião quando, depois de escutar e agradecer tudo o que foi exposto, disse, levando a mão ao peito: “Mas a responsabilidade é minha”. Viu-se que realmente aquilo lhe pesava.

E Bento XVI, quando o conheceu?

[Bento XVI] escutava muito, e nunca era ele quem dava por terminadas as entrevistas.

Conheci o cardeal Ratzinger quando fui nomeado consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1986. Depois me encontrei com ele com alguma frequência, em reuniões com poucas pessoas. Muitas outras vezes fui vê-lo para tratar diversos assuntos.

O senhor se recorda de alguma história desses encontros?

Sempre percebi um detalhe nele: escutava muito, e nunca era ele quem dava por terminadas as entrevistas.

Me lembro de várias histórias. Por exemplo, quando ocorreu o famoso affaire de Lefebvre, estive nas reuniões com o bispo francês, se não me engano, em 1988. Em uma reunião participavam o cardeal Prefeito Ratzinger, o Secretário da Congregação, o próprio Lefebvre com dois conselheiros e um ou dois outros consultores da Congregação para a Doutrina da Fé. Lefebvre havia aceitado, mas depois voltou atrás. Estando eu um momento a sós com Ratzinger, escapou-lhe da alma com pena: “Como não se dão conta de que sem o Papa não são nada!”

Como Papa, pude cumprimentá-lo várias vezes, mas não ter propriamente uma conversa. Depois da sua renúncia vi-o duas vezes, acompanhando D. Javier Echevarría ao lugar onde agora vive: achei-o muito carinhoso, idoso, mas com a mente plenamente lúcida.

Já que mencionou o problema com os lefebvrianos, o senhor vê alguma saída?

Não tive contato depois das últimas reuniões teológicas com eles, há pouco tempo, mas pelas notícias que saem, parece que se poderia estar próximo de solucionar.

Quando conheceu o Papa Francisco?

O conheci na Argentina, quando era bispo auxiliar de Buenos Aires. Eu acompanhava Mons. Javier Echevarría. Voltei a encontrá-lo em 2003, quando já era cardeal arcebispo. Dava a impressão de ser uma pessoa séria, amável, próxima às preocupações das pessoas. Depois seu rosto mudou: agora o vemos com esse sorriso contínuo.

O vi várias vezes sendo papa. Ontem recebi uma carta sua. Eu havia mandado uma carta agradecendo a nomeação, a prontidão com que fez isso e o detalhe de uma imagem da Virgem que me mandou nesse dia. E me respondeu com uma carta muito bonita em que, entre outras coisas, me pede que reze por ele, como sempre faz.

Prioridades

Em seu primeiro dia como Prelado, o senhor se referiu a três prioridades atuais do Opus Dei: juventude, família e pessoas necessitadas. Comecemos pela juventude.

É preciso favorecer que os jovens façam perguntas profundas que, na verdade, só encontram plena resposta no Evangelho.

No trabalho do Opus Dei, com os jovens se comprova como a juventude de hoje – pelo menos, boa parte – responde com generosidade aos ideais grandes, por exemplo, na hora de envolver-se em atividades de serviço aos mais desfavorecidos.

Ao mesmo tempo se percebe em muitos uma falta de esperança, pela ausência de ofertas profissionais, por problemas familiares, por uma mentalidade consumista ou por diferentes ações que obscurecem esses ideais grandes.

É preciso favorecer que os jovens façam perguntas profundas que, na verdade, só encontram plena resposta no Evangelho. É um desafio, portanto, aproximá-los ao Evangelho, a Jesus Cristo, ajudá-los a descobrir seu atrativo. Aí encontrarão motivos para se sentirem orgulhosos de serem cristãos para viver a fé com alegria e para servir aos outros.

O desafio é escutá-los mais, entendê-los melhor. Nisso têm um papel importante os pais, os avós e os educadores. É importante ter tempo para os jovens, estar ao seu lado. Dar carinho, esbanjar paciência, oferecer companhia e saber apresentar metas exigentes.

Qual é, na sua opinião, a prioridade para a família?

Desenvolver o que o Papa Francisco chamou “o coração” da Amoris Laetitia, ou seja, os capítulos 4 e 5 da exortação apostólica, sobre os fundamentos e o crescimento no amor.

Em nossos dias, se torna necessário redescobrir o valor do compromisso no casamento.

Em nossos dias, se torna necessário redescobrir o valor do compromisso no casamento. Poderia parecer mais atrativo viver afastado de qualquer vínculo, mas uma atitude assim costuma terminar na solidão ou no vazio. Pelo contrário, comprometer-se é utilizar a liberdade a favor de um empenho valioso de grande alcance.

Além disso, para os cristãos, o sacramento do matrimônio dá a graça necessária para tornar frutífero esse compromisso, que não é coisa só de duas pessoas, pois Deus está no meio. Por isso, é importante ajudar a redescobrir o amor matrimonial como um sacramento, especialmente no período de preparação para o casamento.

O atual Prelado junto com seu predecessor em uma viagem a El Salvador.

Nas viagens pastorais acompanhando Mons. Echevarría, o senhor conheceu muitas iniciativas a favor das pessoas desfavorecidas. Viu de perto essa necessidade?

É impressionante a pobreza no mundo. Há países que têm, por um lado, pessoas de altíssimo nível, cientistas..., mas também uma tremenda miséria, que convivem juntas em grandes cidades. Em outros lugares, você encontra uma cidade que parece Madri ou Londres e, a poucos quilômetros, com bairros de uma miséria material impressionante, que formam ao redor da cidade um cordão de favelas. O mundo é diferente de alguns lugares para outros. Mas o que impressiona em todos os lugares é a necessidade de servir aos outros, de que a Doutrina Social da Igreja se torne realidade.

Em que sentido as pessoas necessitadas são uma prioridade para a Igreja e, consequentemente, para o Opus Dei?

São uma prioridade porque estão no centro do Evangelho e porque são amadas de um modo especial por Jesus Cristo.

[Se trata de] ajudar que cada fiel da Prelazia e cada pessoa que se aproxime de seus apostolados descubra que sua vida cristã é inseparável da ajuda aos mais necessitados.

No Opus Dei, há um primeiro aspecto mais institucional: o das iniciativas que pessoas da Prelazia promovem com outras pessoas para amenizar necessidades concretas do momento e do lugar em que vivem, e as que Obra presta assistência espiritual. Alguns casos concretos e recentes são, por exemplo, Laguna, em Madri, uma iniciativa médica para atender pessoas que necessitam de cuidados paliativos; Los Pinos, um centro educativo situado em uma zona periférica de Montevidéu, que promove o desenvolvimento social dos jovens; ou o Iwollo Health Clinic, uma clínica médica que oferece atendimento gratuito a centenas de pessoas de zonas rurais da Nigéria. Essas e outras obras similares deveriam continuar e crescer porque o coração de Cristo leva a isso.

A outra vertente, mais profunda, é ajudar que cada fiel da Prelazia e cada pessoa que se aproxime de seus apostolados descubra que sua vida cristã é inseparável da ajuda aos mais necessitados.

Se olhamos ao nosso redor, em nosso lugar de trabalho, na família, encontraremos tantas ocasiões: idosos que vivem na solidão, famílias que passam por dificuldades econômicas, pobres, desempregados há muito tempo, doentes do corpo e da alma, refugiados… São Josemaria se dedicava especialmente ao cuidar dos doentes, pois via neles a carne sofredora de Cristo redentor. Por isso, costumava se referir a eles como “um tesouro”. São dramas que encontramos na vida ordinária. Como dizia a Madre Teresa de Calcutá, agora santa, “não é necessário ir para a Índia para atender e dar amor aos outros: se pode fazê-lo na mesma rua em que você mora”.

Mons. Javier Echevarría e Mons. Fernando Ocáriz conversam em Moscou com duas Missionárias da Caridade.

Na sociedade atual a evangelização apresenta novos desafios, e o Papa recorda que a Igreja está sempre “em saída”. De que forma o Opus Dei participa deste convite?

O Papa convoca uma nova etapa evangelizadora, caracterizada pela alegria daqueles que, tendo encontrado a Jesus Cristo, se colocam “em saída” para compartilhar esse dom com os seus iguais.

No Opus Dei se experimentam as mesmas dificuldades que todos na Igreja, e pedimos ao Senhor, que é o “dono da messe”, que envie “trabalhadores para sua messe”.

Só pode dar verdadeira alegria quem têm uma experiência pessoal de Jesus Cristo. Se um cristão dedica tempo ao seu trato pessoal com Jesus, poderá dar testemunho de fé em meio às atividades diárias, e ajudar a descobrir aí a alegria de viver a mensagem cristã: o operário com o operário, o artista com o artista, o universitário com o universitário…

As pessoas do Opus Dei – com todos os nossos defeitos – desejamos contribuir para a edificação da Igreja desde o próprio lugar de trabalho, na própria família… esforçando-nos para santificar a vida cotidiana. Muitas vezes, se tratará de âmbitos profissionais e sociais que ainda não experimentaram a alegria do amor de Deus e que, neste sentido, são também periferias às quais é necessário chegar, de um a um, de pessoa a pessoa, de igual a igual.

Uma preocupação generalizada na Igreja são as vocações. O que o senhor aconselharia, a partir da experiência do Opus Dei?

No Opus Dei se experimentam as mesmas dificuldades que todos na Igreja, e pedimos ao Senhor, que é o “dono da messe”, que envie “trabalhadores para sua messe”. Talvez um desafio especial é fomentar a generosidade entre os jovens, ajudando-os a compreender que a entrega a Deus não é só renúncia mas sim dom, presente que se recebe e que faz feliz.

Quem dera que na vida de um católico não falte cada dia um pequeno gesto pelo Santo Padre

Qual é a solução? Me vem à cabeça o que dizia o fundador do Opus Dei: “Se queremos ser mais, sejamos melhores”. A vitalidade da Igreja não depende tanto de fórmulas organizativas, novas ou antigas, mas de uma abertura total ao Evangelho, que leva a uma mudança de vida. Tanto Bento XVI como o Papa Francisco lembraram que são sobretudo os santos que fazem a Igreja. Portanto, queremos mais vocações para toda a Igreja? Esforcemo-nos mais por corresponder pessoalmente à graça de Deus, que é quem santifica.

Desde a sua eleição o senhor pediu com frequência orações pela Igreja e pelo Papa. Como fomentar essa unidade com o Santo Padre na vida das pessoas correntes?

Pede-me um conselho. Todos os que saudaram pessoalmente ao Papa Francisco, e desde 2013 foram milhares, escutaram este pedido: “Rezai por mim”. Não é uma frase feita. Quem dera que na vida de um católico não falte cada dia um pequeno gesto pelo Santo Padre, que leva muito peso sobre si: recitar uma oração simples, realizar um pequeno sacrifício, etc. Não se trata de buscar coisas difíceis, mas algo concreto, diário. Aos pais e mães de família lhes animo também que convidem seus filhos, desde pequenos, a rezar uma breve oração pelo Papa.