Josemaría Escrivá: um autêntico revolucionário

Surgido sem ruído, no dia 2 de outubro de 1928, o Opus Dei logo se apresentaria como um desses fenômenos autenticamente revolucionários que ajudariam a transformar a face do cristianismo no século 20.

Ainda que na sua famosa trilogia o historiador inglês Eric Hobsbawm tenha definido o século 19 como sendo o da Era das Revoluções, nunca um século reivindicou tantas revoluções para si como o nosso recém-encerrado século 20. Revolução Socialista, Revolução Comunista, Revolução Artística, Revolução Cultural ou Contracultural, Revolução Sexual, Revolução Neoliberal, para citar apenas algumas.

Todo esse fragor revolucionário, entretanto, em geral não passou de manipulação e propaganda - aliás, estes sim elementos intimamente associados ao século 20 - já que, em muitos casos, faltaram os elementos fundamentais que caracterizam uma autêntica revolução, tais como o "revolver" vivo e fecundo do passado no presente e o caráter permanente das transformações introduzidas.

A revisitação do século passado por muitos historiadores e analistas contemporâneos tem ajudado a vislumbrar com mais clareza, principalmente à luz das grandes transformações ocorridas nas suas duas últimas décadas, o real sentido e alcance de muitas dessas "revoluções" desencadeadas nesta conturbada Era dos Extremos. E não têm sido poucas as surpresas. Em muitos casos se conclui que o barulho foi maior que o desmoronamento.

Atentos principalmente aos domínios da política, economia e cultura, poucos ainda, entretanto, são aqueles que começam a analisar os sucessos no campo espiritual e religioso. E é surpreendente verificar que neste campo tão insuspeito se apresentaram fenômenos autenticamente revolucionários. O Opus Dei, fundado pelo espanhol Josemaria Escrivá, é um exemplo.

Surgido sem ruído, no dia 2 de outubro de 1928, na solidão do quarto de um casarão madrileno, onde o jovem sacerdote Josemaria Escrivá fazia seu retiro espiritual (cf. Vazquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, 4.ª edição, Madrid, Rialp, 1998, pp. 251 e ss.), o Opus Dei logo se apresentaria como um desses fenômenos autenticamente revolucionários que ajudariam a transformar a face do cristianismo no século 20.

Fundamentado no princípio evangélico da vocação universal à santidade, o Opus Dei "revolvia" o passado do cristianismo, trazendo de volta a noção primitiva da santidade como uma chamada e um dever de qualquer cristão, fosse ele sacerdote ou leigo, nobre ou escravo, homem ou mulher, jovem ou velho. Noção esta praticamente esquecida a partir do momento em que, no alvorecer da Idade Média, o surgimento da espiritualidade cenobítica e, consequentemente das ordens religiosas, acabou por permitir, sem se propô-lo, o desenvolvimento da ideia de que a santidade seria privilégio de apenas uma classe específica de cristãos.

É certo que, pelo menos desde o Renascimento, em função do humanismo e do individualismo, a questão da vocação universal à santidade vinha sendo, de várias maneiras, recolocada, mas, até o século 20, ainda não havia surgido um posicionamento tão claro, concreto e adequado ao cidadão comum e corrente, ao simples fiel que vive sua vida e seu trabalho "no meio do mundo", como aquele apresentado pelo Opus Dei.

Sem exigir nenhum voto ou consagração especial que, de certa forma, distinguiria o fiel cristão do resto dos batizados ou mesmo dos seus concidadãos, o Opus Dei traz a religião e a espiritualidade para o mundo do trabalho, da vida comum da dona de casa, do motorista de táxi, do professor universitário, do político, do operário, na medida em que assinala a possibilidade de que todas as atividades humanas se tornem opus Dei, operatio Dei, obras agradáveis a Deus. Neste sentido, a espiritualidade, a religião se fundem com a ética e mesmo com a condição humana em seu esforço por aperfeiçoar a natureza. O Opus Dei vem lembrar que a religião não se limita à participação em determinados atos litúrgicos ou de piedade, mas abarca a vida como um todo, desde o relacionamento conjugal até o cafezinho no intervalo daquele trabalho extenuante.

Este vislumbre verdadeiramente revolucionário se deu, segundo o próprio Josemaría Escrivá, não como resultado de um ingente esforço intelectual. O Opus Dei não nasceu do estudo aprofundado da antiguidade cristã a partir de um projeto pré-determinado de revolucionar a espiritualidade católica no século 20. Surgiu, antes, na mente do fundador - por expresso querer de Deus - como uma visão de algo que precisava ser realizado, de maneira análoga a como o artista vê a obra de arte antes de executá-la.

Isto não quer dizer, entretanto, que o Opus Dei tenha, como se diz, nascido pronto. Desde seus primeiros vislumbres até sua maturação, exigiu grandes esforços, lutas, sacrifícios, em todos os sentidos.

Além das dificuldades impostas pelas circunstâncias sociais e políticas - a infância do Opus Dei deu-se num contexto de radicalização política e ideológica pouco propícia para o desenvolvimento de idéias religiosas (estamos falando da Espanha às vésperas da Guerra Civil) -, Josemaria Escrivá enfrentaria também as incompreensões e perseguições por parte de alguns católicos, para quem o Opus Dei soava como heresia. Contando, entretanto, num primeiro momento, com o apoio do arcebispo de Madrid e depois, com a anuência do Vaticano, a fundação de Josemaria Escrivá teve os seus estatutos aprovados e o seu espírito reconhecido.

A partir de 1946, estabelecido em Roma, Escrivá coordena a expansão do Opus Dei pelo mundo, ao mesmo tempo que os princípios essenciais da sua mensagem laical começam a encontrar guarida no próprio magistério da Igreja. Sem dúvida, é indiscutível a influência destas idéias revolucionárias sobre a vocação universal à santidade e a respectiva responsabilidade do leigo na vivência e propagação da fé católica, no processo de aggiornamento levado a cabo pela Igreja no Concílio Vaticano II, durante os anos 60. O Opus Dei já vinha desempenhando um importante papel na experiência e difusão de princípios e práticas fundamentais para o catolicismo contemporâneo, como a defesa da liberdade, a igualdade radical de todos os seres humanos, o ecumenismo, a solidariedade, a ética, a cidadania e a defesa da vida.

Hoje, o Opus Dei estende-se por inúmeros países nos cinco continentes.

Erigida como Prelazia Pessoal pelo Papa João Paulo II em 1982, a Obra do Bem-aventurado Escrivá - falecido em 26 de junho de 1975, aos 73 anos - que "trazendo de volta" os ideais dos primeiros cristãos, ajudou a revolucionar a Igreja no século 20, continua, neste novo milênio que se abre, apontando caminhos de mudança, na medida em que se lança à tarefa de advertir as consciências para a responsabilidade cristã para com o mundo. Viva e "revolucionária" mantém-se a mensagem do sacerdote cujo centenário a 9 de janeiro celebrou-se e que a Igreja beatificou em 1992, apontando-o como figura exemplar para os cristãos dos nossos tempos.

Dante Marcello Claramonte Gallian é doutor em História Social pela FFLCH-USP; diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina; autor do livro 'Madre Maria José de Jesus no Caminho de Perfeição' (São Paulo/ Florianópolis, Carmelitas Descalças/CFCH-UFSC, 1997)

    Dante Marcello Claramonte Gallian // O Estado de S. Paulo