Considerações sobre "Caminho"

Esther Miranda, bacharel em letras pela USP, colaborou na revisão da recém publicada edição comentada de Caminho, e comenta neste testemunho como descobriu a intimidade de São Josemaria ao revisar o livro.

Revisar a edição comentada de Caminho foi uma experiência intensa. Eu já há algum tempo tinha Caminho como um livro de especial relevância porque a experiência de lê-lo permitiu um conhecimento diferente da minha própria vida e um novo olhar sobre o meu cotidiano. Eu o lia durante a faculdade, no intervalo entre as aulas, em momentos de oração, no ônibus, no metrô. E me parecia que São Josemaria tinha a incrível capacidade de pôr a descoberto a minha alma em qualquer lugar onde estivesse. Tinha palavras duras, de conselho, de ânimo, mas sempre chegava com grande intimidade exatamente no ponto de que eu precisava naquele momento.

Como todo trabalho, havia sido previsto um tempo no qual seria bom que eu terminasse. Esse fato permitiu que em um curto período eu me dedicasse a um trabalho intenso de leitura. E o mais incrível foi que a leitura da história de cada um dos pontos de Caminho me produziu a sensação de ser minha vez de pôr a descoberto a alma de São Josemaria

Em muitos momentos eu descobri pontos que não tinham chamado antes minha atenção. E vistos com um olhar, de quem considera o contexto nos quais foram escritos, permitiram que eu percebesse o quão normal e ao mesmo tempo quão sobrenatural era a vida de São Josemaria. Essa sensação voltou-me várias vezes ao me encontrar com os pontos cuja origem era seu apostolado com os jovens universitários de Madri da década de 30. Encontrei ali muitas questões da minha própria vida universitária e também o modo como refletir diante delas.

Essa reflexão me chamou a atenção. Conforme eu revisava cada página, cada ponto, cada frase, eu compreendia um pouco mais o modo como São Josemaria refletia diante das questões mais cotidianas. Em Caminho eu tinha as conclusões prontas, ou então, uma breve linha de raciocínio antes de chegar a essas conclusões. Nessa edição, eu podia ver que embora alguns pontos tivessem "nascido" prontos, a maioria tinha sido elaborada em mais tempo, porque fora antes gasta diante do sacrário por São Josemaria. E percebi também como em muitos momentos essa reflexão era fruto de uma boa mistura que São Josemaria fazia de suas leituras de grandes autores espirituais, de autores literários e das cartas desses jovens universitários com quem se correspondia com frequência. Seu olhar estava atento a cada linha e em cada acontecimento. Não importava tanto a origem dessas considerações: Deus lhe falava desse modo, e ele podia ver isso. E esse era o seu modo de refletir e de adquirir esse olhar profundo diante das ocasiões mais banais.

Os pontos que tinham origem nas suas anotações pessoais, suas catalinas, seus propósitos, me permitiram aprofundar mais na consideração da santidade construída a cada dia: são Josemaria não era um santo completo, um bloco, do início ao fim de sua vida, a santidade estava no processo. Eu sabia disso, na teoria, mas ver ali a história de suas lutas me mostrou essa santidade que se forjava um dia após o outro.

Percebi isso também ao me dar conta com maior profundidade do processo de escrita dos pontos de Caminho. Não tinham sido elaborados de uma única vez, determinados em capítulos previamente estabelecidos. Não eram parte de uma teoria acadêmica, fria, sem qualquer tipo de contato com a realidade. Ao contrário: tinham sido vividos, experimentados, tinham o calor da realidade e por isso têm ainda hoje um efeito tão vivo na vida de tantas pessoas.

A consideração desse processo, da santidade construída a cada momento, era uma metalinguagem desse trabalho de revisão: enquanto eu considerava o processo no qual a alma de São Josemaria se forjava na santidade, também eu tinha que considerar o meu trabalho como esse processo. Em um breve período, eu tinha que lidar com a apresentação do texto, a unidade das notas de rodapé, do sentido que havia de ser transmitido pela tradução, das frases escritas em latim ou italiano cujo texto não havia sido ainda traduzido. Eram muitos detalhes, mas era nesses detalhes que a mensagem daquele mesmo texto exigia uma reciprocidade.

Espero que ninguém se detenha paralisado diante da (talvez) assustadora quantidade de páginas desse volume. Mais valeria então começar por aqueles pontos ou capítulos com que tenhamos mais afinidade, porque são já parte de quem somos. Ou então por aqueles pontos nos quais paramos tantas vezes, sem entender completamente. A edição comentada pode nos ajudar a descobrir mais de nós mesmos, quando começarmos a descobrir mais de São Josemaria.

Esther Miranda