A “solução jurídica” da Obra

Pilar Urbano, no seu livro O homem de Villa Tevere relata os passos que São Josemaria deu para que o Opus Dei adquirisse a sua configuração jurídica definitiva.

"Trata-se de abrir na floresta do direito geral da Igreja um caminho novo"

Sumário:

24 de fevereiro de 1947 - O "Decretum laudis"

16 de junho de 1950 - A Aprovação definitiva

Buscando novos caminhos

O Concílio Vaticano II - Novas esperanças

A “batalha” que o Opus Dei tem de travar sem desembainhar outras armas que não as de rezar muito, estudar muito, esperar muito e calar-se muito, é a batalha jurídica. Trata-se de abrir na floresta do direito geral da Igreja um caminho novo, uma senda jurídica idônea para que a Obra possa existir, trabalhar e expandir-se, de acordo com a sua natureza secular.

Não, não chegaram “com um século de antecedência”, como disse aquele alto prelado da Cúria; mas não há dúvida de que, entre pequenos avanços, longas pausas, rodeios e atalhos que não levam aonde se pretende chegar, transcorrerá mais de meio século – de 1928 a 1982 – até que o Opus Dei obtenha a sua formulação canônica adequada, como Prelazia pessoal de âmbito universal.

O “Decretum laudis”

13 de janeiro de 1948. O Padre e Álvaro del Portillo viajam de carro de Roma a Milão. É um dia frio, pardacento e com denso nevoeiro. Há menos de um ano – fevereiro de 1947 – que Pio XII concedeu à Obra o Decretum laudis. Está-se à espera da aprovação definitiva. O carro avança devagar, com os faróis acesos. Chegam à altura de Piacenza quando Escrivá, que ia absorto e calado, de repente exclama: “Cabem!”

Acaba de encontrar o elo de ligação canônico para que também as pessoas casadas possam ser membros do Opus Dei[1]. Já há muitas delas bem preparadas, que se esforçam por alcançar a santidade na vida matrimonial. Praticam já as normas e os costumes do Opus Dei. Falta apenas inserirem-se na Obra com um vínculo jurídico.

A 2 de fevereiro de 1948, o Fundador formula esse pedido à Santa Sé[2]. E, sem mais demora, abrem-se as portas aos membros casados. Vítor García Hoz, Tomás Alvira e Mariano Navarro Rubio são os três primeiros. Pouco depois, chegarão muitos outros.

A partir desse momento, Escrivá sente-se cada vez mais premido pelo “puxão” dos sacerdotes diocesanos. Desassossegam-lhe a alma a desatenção espiritual, o empobrecimento cultural e até a solidão humana de tantos e tantos sacerdotes que andam por aí ao deus-dará.

Para atendê-los bem, a solução seria que os que tivessem essa vocação entrassem para o Opus Dei. Mas como conciliar a sua pertença à Obra com a dependência em que se encontram em relação ao seu respectivo bispo? Escrivá remói o problema de uma possível “dupla obediência”. E, nesse contexto, pensa com toda a honradez que Deus lhe pede o sacrifício, duríssimo, de deixar a Obra para fazer uma fundação dedicada exclusivamente aos sacerdotes diocesanos.

Ah, mas... a lógica de Deus vai discorrer por outros prados: não tem necessidade de aceitar o ingente sacrifício que Josemaria está disposto a oferecer-lhe. Esse gesto – mais do que generoso, heroico – de desapego em relação a uma Obra que nasceu em suas mãos e na qual já deixou retalhos da sua vida e da sua honra, é outra “prova dos nove” de que Escrivá não se considera nem fundador-proprietário do Opus Dei, nem alma mater essencial, nem fator imprescindível para que a Obra prossiga o seu caminho.

Mas Deus é o Senhor dos tempos. Desta vez, para fazer as coisas “mais e melhor”, não as fará “antes”, e sim depois.

Contra todas as previsões, e apesar dos desejos de todos, atrasa-se a aprovação definitiva que Pio XII tinha de sancionar. Embora a Cúria já disponha de todos os pareceres favoráveis, surge em 1º de abril de 1950 um inesperado adiamento, um dilata, que, com todos os aborrecimentos que traz, afinal de contas vai tornar-se um fator providencial. A razão é que, justamente nesse intervalo de tempo, nessa primavera de espera forçosa, Josemaria Escrivá “entende” com nitidez que também há lugar na Obra para os sacerdotes diocesanos. Talvez seja mais correto dizer que o que Escrivá “entende” é o modo de fazer “entender” aos organismos da Santa Sé aquilo que ele já havia “entendido” no dia 2 de outubro de 1928, quando vira a Obra formada por leigos e sacerdotes.

Assim como, entre os casados, o eixo da sua santidade é precisamente a sua “vocação matrimonial”, com todos os deveres do seu estado e ofício, assim também, entre os clérigos, a plataforma da sua vinculação à Obra será a possibilidade de se santificarem na sua “vocação sacerdotal” e pelo desempenho dos trabalhos próprios do seu ministério. Não há nada que inventar nem página que corrigir na Obra, tal como saiu da mente de Deus.

Quanto ao aparente problema da “dupla obediência”, derrete-se como um torrão de açúcar. Esses sacerdotes diocesanos só terão um superior: o seu bispo. Toda a sua dependência no Opus Dei será em relação ao diretor espiritual que, expressamente, não exerce funções de governo: para ajudá-los a ser santos, pode “aconselhar”, mas não pode “mandar”.

“Primum Inter” - A Aprovação definitiva

A aprovação pontifícia do Opus Dei efetiva-se a 16 de junho de 1950, mediante o decreto Primum inter. No espaço de tempo entre a chegada de Escrivá a Roma e essa sanção definitiva, às dificuldades econômicas para a compra e as obras de Villa Tevere juntaram-se as duríssimas calúnias que, sempre “exportadas” da Espanha, e sempre por lábios de “gente boa maldizente”, instalaram as suas tocas em Roma, em Milão e mais alguma cidade italiana, chegando a circular com livre trânsito pelos corredores da Cúria.

Mas o Opus Dei cresce e se expande. Em 1946, havia 268 membros (239 homens e 29 mulheres). Nos primeiros meses de 1950, a cifra mais que decuplicou: 2.954 membros (2.404 homens e 550 mulheres). Os sacerdotes – que em 1946 eram o Fundador e outros três –, em 1950 já são 23, e outros 46 leigos se preparam para ser ordenados. Não se trata ainda de sacerdotes diocesanos, que procedam do seminário, mas de leigos que, pertencendo já ao Opus Dei e estando no exercício do seu trabalho profissional, aceitaram livremente o convite do Padre para serem sacerdotes, depois de obterem um doutorado eclesiástico. Muitos deles têm também um doutorado civil.

Quando a Obra recebe a aprovação pontifícia, já se encontra estendida pela Espanha, Portugal, Grã-Bretanha, Irlanda, França, México, Estados Unidos, Chile e Argentina. E, como se diz, está de malas prontas para iniciar o trabalho apostólico na Colômbia, Peru, Guatemala, Equador, Alemanha, Suíça, Áustria... E, passados apenas oito anos, dará o salto para a Ásia, a África e a Oceania. Como costuma acontecer, a vida precedeu a norma.

No verão desse mesmo ano de 1950, a Santa Sé comunica a Escrivá que já se pode tornar pública a aprovação definitiva. O Padre determina que, em todos os centros do Opus Dei – que já são uma centena –, se celebre um solene ato eucarístico em que se cante ou se recite o Te Deum, em ação de graças.

Na verdade, era um Te Deum que havia custado muito trabalho, muita oração, muitas ante-salas, muitas vigílias, muitas horas incertas... Era um Te Deum de júbilo, mas de um júbilo arfante.

Agora ia começar – ou melhor: recrudescer – a contenda para impedir que uma norma confeccionada pelos homens asfixiasse uma espiritualidade suscitada por Deus. Espiritualidade que, ou era limpidamente secular, ou não faria nenhuma falta... nem a Deus nem aos homens.

Reparou-se em breve que a roupagem canônica de Instituto Secular não era apenas insuficiente e inadequada para o Opus Dei; dada a sua natureza, mais do que “uma roupa apertada”, era um “disfarce”. O Opus Dei não era de fato o que pretendiam que fosse de direito.

Buscando novos caminhos

Pio XII já tinha confeccionado a Provida Mater Ecclesia. Era o máximo que podia fazer; não se podia esperar outra inovação jurídico-pastoral no seu pontificado. Por sua vez, João XXIII teria entre mãos outra ímproba tarefa: a de convocar e pôr em andamento o Concílio Vaticano II; além disso, pretendia renovar o Código de Direito Canônico vigente. Era hora de dar corda à paciência, à espera, porque seria demorada.

Não obstante, uma bateria de equívocos, que tentavam com pertinácia assimilar e equiparar os membros do Opus Dei aos de outras instituições “religiosas”, forçaram mons. Escrivá a solicitar uma revisão do status jurídico da Obra. Entre março e junho de 1950, têm lugar várias entrevistas e trocas de notas “oficiosas” entre Álvaro del Portillo e mons. Scapinelli, e entre mons. Escrivá e o Secretário de Estado, cardeal Tardini. Em 27 de junho desse ano, no fim de uma audiência, com um gesto de braços tão pomposo como derrotista, Tardini diz a Escrivá:

– Siamo ancora molto lontani...!

Ao que Escrivá responde:

– Bem, estamos ainda muito longe... Bem, mas a semente foi lançada... e não deixará de frutificar.

O Opus Dei não pede que se crie para os seus membros “um novo estado”, mas um enquadramento jurídico em consonância com o que são e com o que vivem. Não lhes interessa um “estado de perfeição”, mas a liberdade de poderem chegar à perfeição, permanecendo cada qual no seu “estado”: no seu estado civil e no exercício da sua profissão ou ofício.

Mas esse pedido de revisão, sugerido por um personagem da Cúria romana, dormirá o sono dos justos. O cardeal Tardini disse-o lealmente a Del Portillo:

– Nem sequer olho para isto. É inútil...[3]

Em 1962, incentivados pelo cardeal Ciriaci, voltam a fazer outra tentativa. Desta vez, o pedido vai de modo formal e oficial a João XXIII. A resposta é que “há obstáculos praticamente insuperáveis”.

João XXIII também recebe Escrivá numa audiência. E, em certa ocasião, comenta com o seu secretário, mons. Loris Capovilla, que mais tarde seria bispo de Loreto: “L'Opus Dei è destinata a operare nella Chiesa su inattesi orizzonti di universale apostolato” (“O Opus Dei está destinado a abrir na Igreja insuspeitáveis horizontes de apostolado universal”).

João XXIII morre em junho de 1963. O Conclave elege como Papa Giovanni Battista Montini: Paulo VI.

Álvaro del Portillo faz diligências junto de diversas personalidades do Vaticano, informando-as de que a questão institucional do Opus Dei ainda não foi resolvida. Um desses contactos é com o cardeal Confalonieri que, guardando os papéis, lhe diz no latim da burocracia eclesiástica: “Reponatur in archivio”. E o pedido de um novo status, que não pretende senão ser no papel o que já é na rua, volta para o porão do esquecimento.

Ainda haverá duas audiências privadas, e muito cordiais, concedidas por Paulo VI a Escrivá. Ao encerrar-se a primeira, Del Portillo entra um instante para cumprimentar o Papa. Paulo VI recebe-o sorridente, estendendo-lhe os dois braços, feliz com o reencontro:

– Pe. Álvaro, pe. Álvaro...! Faz tanto tempo que nos conhecemos!

– Vinte anos, Santo Padre.

– De lá para cá, fiz-me velho...

– Oh, não, Santidade: fez-se... Pedro![4]

Paulo VI compreende que aquilo que o fundador defende é a condição secular e libérrima da sua gente, “fiéis e cidadãos comuns”

Por conhecer o Opus Dei há vinte anos, Paulo VI compreende que aquilo que o Fundador defende é a condição secular e libérrima da sua gente, “fiéis e cidadãos comuns”, para trabalharem com autonomia em todas as atividades honestas da sociedade civil: para poderem exercer a docência em escolas ou Universidades não necessariamente confessionais; para se dedicarem ao comércio, ou à atividade bancária, ou à produção de vinhos, ou a qualquer outro negócio lícito e honrado; para exercerem a medicina, atuarem no teatro ou no jornalismo, em meios de comunicação não católicos; para se sindicalizarem, associarem, entrarem na carreira política, militar ou atlética... “Quero que – para as coisas sociais, políticas, econômicas – os meus filhos tenham a mesma liberdade que têm os outros católicos: nem mais nem menos liberdade”[5], dirá Josemaria Escrivá, precisamente porque todas essas e muitas outras atividades civis se dificultavam ao terem de usar a máscara de Instituto Secular.

A 14 de fevereiro de 1964, o Fundador escreve ao Papa uma “nota de consciência”, um Appunto riservato all'Augusta Persona del Santo Padre. Nela, entre outros assuntos, propõe algumas modificações no texto das Constituições que regem a Obra desde 1950.

Tempos atrás, baseando-se na faculdade que a Santa Sé lhe havia concedido de introduzir mudanças nesse documento que regia o Opus Dei, Escrivá propusera a Pio XII algumas alterações – treze, no total –, todas elas relativas ao regime das mulheres dentro da Obra, visando reforçar o seu autogoverno e, ao mesmo tempo, revigorar a unidade. A Santa Sé aprovara-as imediatamente. A proposta fora apresentada em 16 de julho de 1953 e a “luz verde” pontifícia não demorara nem um mês: chegara a 12 de agosto.

Este esclarecimento não é supérfluo: desmente uma informação errônea, recentemente publicada, segundo a qual Escrivá e Del Portillo, naquele ano de 1953, utilizavam a pequena oficina tipográfica de Villa Tevere “para alterar os textos das Constituições... às costas do Papa”. Não é verdade. Embora pudesse fazer uso do “foro” de Fundador, Escrivá, sempre que introduziu alguma alteração nos estatutos, fê-lo depois de elevar o correspondente pedido ao Pontífice. Como acabamos de ver, em 1953 solicitara a vênia de Pio XII, e, em 1963, solicitou a de Paulo VI[6].

Depois da “nota reservada” ao Papa, recebe-se uma primeira resposta oficial, que é um dilata. No fim das contas, esse breve vocábulo elegantemente vago não significa, na diplomacia vaticana, que as portas estejam fechadas, mas que a possibilidade permanece de pé..., porém para mais adiante. Não é um “não”. É um “ainda não”.

Novas esperanças

Não obstante, Paulo VI faz ver a mons. Escrivá que, no desenrolar do Vaticano II, podem abrir-se novas vias que tornem possível a desejada solução para o enquadramento institucional do Opus Dei.

E assim será. O documento conciliar Presbyterorum Ordinis (1965) e os textos que aplicarem as suas resoluções – Ecclesiae Sanctae (1966) e Regimini Ecclesiae Universae (1967) – irão contendo as normas gerais, o bastidor firme sobre o qual se poderá tecer, por fim, a nova roupagem: a figura jurídica das Prelazias pessoais. Em plural, porque não se trata de uma criação exclusiva e excludente para o Opus Dei.

Após a publicação do motu proprio Ecclesiae Sanctae, Josemaria Escrivá, muito contente, comentará aos seus filhos:

– Mal saiu o documento, o secretário do Concílio enviou-o ao pe. Álvaro, com uma felicitação. Quem quer que tenha olhos na cara vê que se trata de uma roupa feita sob medida para o Opus Dei[7].

Em 12 de setembro de 1965, Escrivá recebe em Villa Tevere uma visita tão esperada como desejada: o padre Arrupe, Geral da Companhia de Jesus.

O Fundador do Opus Dei corresponderá a essa visita indo almoçar no Borgo Santo Spirito, a casa generalícia dos jesuítas, no dia 10 de outubro desse mesmo ano. A propósito, nesta ocasião Arrupe quis que tirassem umas fotografias juntos no terraço, tendo por pano de fundo uma vista panorâmica de Roma.

Vinham sendo abundantes as insídias, as atitudes hostis, os comentários depreciativos, as murmurações distorcidas... de alguns jesuítas – casos isolados e sempre “a título pessoal” – contra o Opus Dei. Escrivá quis esclarecer as coisas desde o primeiro momento. Era absurdo que o crescimento das vocações para a Obra provocasse esse tipo de ciumeiras entre estes ou aqueles religiosos. Por quê? A Obra nunca pode “comer terreno” a nenhuma instituição religiosa, porque a chamada ao Opus Dei só se produz entre os que não sentem nem sentiram nunca a mais leve inclinação para o estado religioso. Não é possível haver rivalidades. Em numerosas ocasiões, é o próprio Escrivá quem orienta e encaminha rapazes e moças que se aproximam da Obra para a sua verdadeira vocação – diametralmente oposta – no noviciado ou no convento. E, ao fazê-lo, não pensa que esteja perdendo uma “peça”. Acontece simplesmente que, para essa ou para esse, o Opus Dei não é o seu lugar. E uma pessoa fora do seu lugar não pode ser eficaz, nem fecunda, nem fiel, nem feliz: “Cada qual na sua casa, e Deus na de todos”.

O padre Arrupe volta novamente a Villa Tevere em 8 de dezembro de 1965, convidado para o almoço. Acompanham-no outros dois jesuítas: o pe. Blajot e o pe. Iparraguirre

Na pequena sala de jantar para convidados em Bruno Buozzi, Escrivá conta a Arrupe:

“– Há alguns anos, vieram visitar-me da Espanha os da BAC, da Editorial Católica. Disseram-me que haviam editado as Constituições da Companhia de Jesus, e queriam a minha autorização para publicarem o direito peculiar, o ius peculiare, da Obra.

“Respondi-lhes que compreendia que se editassem as Constituições dos senhores, porque tinham já o depósito, o sedimento firme, de terem sido escritas há quatrocentos anos. Mas o nosso direito peculiar é ainda muito recente. Garanti-lhes que, a seu devido tempo, também seria publicado. E acrescentei: «Sei que não me engano se afirmo que não os faremos esperar tantos anos como os jesuítas...!»”

Nesse momento, o pe. Iparraguirre intervém na conversa e corrobora o que Escrivá acaba de dizer:

– Realmente, nós fizemos a primeira edição há cem anos. Isto é, demoramos três séculos para torná-las públicas.

São Josemaria aprendeu a cultivar a paciência. Curtiu-se na espera. Não tem pressa. Tem urgência.

Josemaria Escrivá, um homem fogoso e cheio de ímpeto, aprendeu, com as pancadas da vida, a cultivar uma grande aptidão para a paciência. Curtiu-se na espera. Não tem pressa. Tem urgência. Mas sabe que o urgente pode esperar. E que, se o urgente é, ainda por cima, importante, deve esperar. Assim o declara aos seus filhos, num dia de outubro de 1966:

– Tenho que dizer-vos que a questão do caminho jurídico já está resolvida. Mas por ora não nos interessa vestir o terno... Quando chegar o momento oportuno, haveremos de vesti-lo: o paletó e as calças.

Não quer stravincere, como dizem os italianos. Não quer que pareça que “consegue o que quer”. É prudente.

Em conversa com pouca gente ou em tertúlia com muitos, faz-lhes ver que a auto-estrada está concluída, mas que lhe cabe “determinar o momento em que se abrirá ao tráfego. Podemos fazê-lo com rapidez ou mais devagar, conforme mais nos convier [...]. Queremos levar uma vida de cristãos e comprometer-nos com um compromisso de amor baseado na nossa honradez... Foi assim que vivemos durante muitos anos”[8].

Voltando à origem

E, em outra ocasião, martelando a mesma ideia, que sempre esteve clara na sua cabeça:

– Que vontade tenho de que possamos morder a cauda, como as pescadas! Voltaremos a ser como no princípio. Nada de votos: faremos um contrato, que é o que eu quis durante toda a vida.

Sim, não se inventou nada de diferente do que “era no princípio”. Já nos anos trinta, residindo em Madri, Escrivá reparara numas lápides mortuárias que havia no piso da igreja do Patronato de Santa Isabel, de que era reitor. Apontara-as certa vez, em 1936, antes de estalar a guerra civil, ao seu filho Pedro Casciaro, enquanto comentava:

– Aí está a futura solução jurídica da Obra.

Nessa ocasião, Casciaro não entendera nem pouco nem muito do que o Padre lhe dissera. Não conseguira saber o que significavam os epitáfios daquelas duas lápides, nem lhe ocorrera que a Obra precisasse de uma “solução”, e menos ainda que devesse ser “jurídica”.

Esses sepulcros eram de dois prelados espanhóis, ambos capelães-mor do rei e vigários gerais castrenses: por esta última condição, eram titulares de uma vasta e peculiar jurisdição eclesiástica pessoal. De maneira que ali, nesses epitáfios, estava em germe a figura prelatícia, de âmbito universal, que Escrivá vira para o Opus Dei.

O interessante é verificar que, já naqueles anos – mesmo desde 1928 –, Escrivá, com mentalidade de homem de leis, intuía que a fórmula adequada seria encontrada em alguma coisa semelhante aos ordinariatos ou aos vicariatos castrenses.

Mas a espera até que se possa tomar o “caminho real” ainda deve demorar vários anos. Escrivá assim o pressente. Talvez tenha oferecido a Deus o sacrifício de não ver essa “última pedra” do edifício da Obra:

– Talvez eu me vá sem o ver terminado... Mas o Senhor deixa-me contemplar o que não costuma permitir a outros que vejam. É raro que, a uma pessoa que iniciou um trabalho – eu não quis, nunca me passou pela cabeça ser fundador de nada! –, Deus lhe conceda ver tanto fruto na terra.

Não há dúvida de que a colheita de vocações foi ubérrima em todos os continentes. Nesse ano de 1967, Escrivá sabe que falar do Opus Dei é falar já de várias dezenas de milhares de pessoas que trabalham em setenta e tantos países. A Obra é um campo sazonado. Cumpriu-se outro dos augúrios de Davi no seu Salmo 2: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e estenderei os teus domínios até os confins da terra”.

Num desses maravilhosos crepúsculos romanos, à hora do tramonto, quando o sol, na sua estirada final, fere sem piedade o reboque ocre e avermelhado das paredes de Villa Tevere, Josemaria Escrivá, de uma janela, olha para o terraço del Fiume. Os seus filhos colocaram ali a estátua do nobre jurisconsulto “mutilado”, sem cabeça e sem braços... As dobras da túnica, suaves e harmoniosas na sua pétrea queda vertical, dão à figura um ar de elegante serenidade. Escrivá lê as palavras latinas gravadas no pedestal de mármore: Non est vir fortis pro Deo laborans, cui non crescit animus... E traduz diretamente: “Não há varão forte a quem, trabalhando por Deus, o ânimo não cresça, a coragem não se revigore, mesmo no meio das dificuldades..., ainda que de vez em quando o corpo se despedace”.

É como se contasse a si mesmo a história da sua vida: um esfalfar-se com bravura, com a fortaleza “agressiva” do acometer. E um lutar inerme, suportando as inclemências, com essa outra fortaleza “paciente” do resistir. Isso foi a sua vida: pax... in bello.


[1] Cfr. AGP, RHF 21169, p.71.

[2] RHF, EF-480202-1; requerimento de Mons. Escrivá a Sua Santidade Pio XII.

[3] Cfr. AGP, RHF 21171, p. 1424.

[4] AGP, RHF 20089, p. 16.

[5] Cfr. AGP, RHF 20089, p.37.

[6] El itinerario jurídico…, p.348, nota 148.

[7] Tertúlia 24-X-1966.

[8] Tertulia 29-VI-1969.