“A minha alma tem sede do Deus vivo”

Neste trecho do livro “São Josemaria Escrivá no Brasil”, Francisco Faus fala sobre o desejo do Fundador do Opus Dei de contemplar o rosto de Deus, e como este anseio ajudava-o a caminhar sempre sem temer a morte e a vida.

Com algumas pessoas, em São Paulo, 1974.

Esse artigo faz parte das comemorações do jubileu de ouro da chegada dos primeiros fiéis da Prelazia ao Brasil.

Mais de uma vez, naqueles dias brasileiros com São Josemaria, alguns dos que moravam com ele sentiram-se muito “tocados” ao perceberem que, em momentos em que se julgava sozinho e se recolhia em si mesmo, rezava em voz baixa esta invocação do versículo oitavo do salmo 27 (26): Vultum tuum, Domine, requiram – “A vossa face, ó Senhor, eu a procuro!”

D. Álvaro del Portillo e D. Javier Echevarria contaram-nos que, nos últimos tempos, era cada vez mais frequente essa jaculatória no coração e nos lábios do Padre. Ardia em desejos de “ver o rosto Deus”, de ver – diria São Paulo – Deus face a face (1 Cor 13, 12); e repetia também o versículo terceiro do salmo 42 (41): Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei contemplar a face de Deus?

Soube que, na meditação de Natal de 1973, poucos dias depois de minha saída de Roma e poucos meses antes de ele vir ao Brasil, expressou mais amplamente o que queria dizer com essas jaculatórias:

“As pessoas que se amam procuram ver-se. Os enamorados só têm olhos para o seu amor. Não é lógico que seja assim? O coração humano sente esses imperativos. Mentiria se negasse que me move tanto a ânsia de contemplar a face de Jesus Cristo. Vultum tuum, Domine, requiram, procurarei, Senhor, a tua face. Encanta-me fechar os olhos e pensar que chegará o momento, quando Deus quiser, em que poderei vê-lo, nãocomo num espelho e sob imagens obscuras (...), mas face a face. Sim, filhos, o meu coração está sedento de Deus, do Deus vivo. Quando irei e contemplarei a face de Deus?

Por isso, encarava a morte com uma absoluta serenidade. “Morrer, para um filho de Deus – costumava dizer – é ir ao encontro do abraço de Deus”. “Se me comunicassem: ‘chegou a hora de morrer’ – escreveu –, com que gosto responderia: ‘chegou a hora de viver’”.

Um pensamento análogo ouviu-lhe Renzo, na última tertúlia ampla que o Padre teve em São Paulo, na tarde de 5 de junho. Esse bom supernumerário, que agora deve sorrir-nos lá do Céu, contava ao Padre um problema de saúde que o afetava fazia anos, e perguntava se a psicose de doente não poderia afetar também a vida espiritual. São Josemaria animou-o, contando-lhe detalhes da pior época do seu diabetes:

“Não sei que experiência terá você da doença. Eu tenho um pouco: estive gravemente doente muitos anos, e você vai dar risada da minha psicose... Fiz com que instalassem uma campainha no meu quarto, ao alcance da mão. Disse: pelo menos, toco; e ao ouvir a barulheira, vocês vêm dar-me a Extrema-Unção; porque aquela campainha, uma vez acionada, tinham que ir longe para desligá-la.” “Chegava a noite e dizia: Senhor, não sei se vou levantar-me amanhã; dou-te graças pela vida que me deres e estou contente de morrer em teus braços. Espero na tua misericórdia. Pela manhã, ao acordar, o primeiro pensamento era o mesmo. E a psicose de doente? Fora! Ia embora. E eu sou um pobre homem. Se, com a graça de Deus, eu podia fazer isso, os outros podem também”.

Mais um belo testemunho de seu amor a Deus. Receio, porém que ao contar essas coisas esteja passando uma idéia errada, como se Mons. Escrivá desejasse morrer quanto antes. Não era assim. Ele sempre aceitou a vontade de Deus sobre a morte, fosse qual fosse o momento, mas não “desejava” morrer a não ser quando Deus assim o dispusesse. Repetia com frequência que morrer é “muito cômodo”, e nos movia a desejar viver muitos anos – se essa fosse a vontade do Senhor –, para poder trabalhar muito pela glória de Deus e o bem das almas.

De resto, parece-me importante lembrar que, se é verdade que a união com Deus só será plena no Céu, já nesta terra pode atingir um grau muito elevado, um nível alto de “amor unitivo” – como diriam os grandes místicos –, que constitui como que uma certa antecipação e pré-gustação do Paraíso. Quero dizer que, como nos mostram as vidas dos santos, já nesta vida o desejo de “contemplar o rosto de Deus” pode obter resposta, pois podemos vislumbrá-Lo de modo inefável em duas realidades, em dois grandes mistérios cristãos (...). O primeiro é o da presença, da “habitação” da Santíssima Trindade na alma que está em graça de Deus. O segundo é o mistério da Eucaristia, que nos faz participar do Sacrifício de Cristo no Calvário, receber o Senhor no nosso peito na Comunhão, e tê-lo sempre perto de nós – Cristo real, Cristo vivo, Cristo amigo! – no Sacrário.