A Consagração do Opus Dei ao Coração Dulcíssimo de Maria

Roma, 1951. São Josemaria sente que se aproxima uma grave contradição para o Opus Dei e procura o amparo de Nossa Senhora, em Loreto. “Quem reza nunca volta de mãos vazias” – oferecemos um relato sobre este episódio da história do Opus Dei.

Quando se tratava de ataques ou de ofensas pessoais, não duvidava em aconselhar uma atitude de sereno silêncio e de perdão. Em 1962, Rafael Calvo Serer foi vê-lo a Roma. Abriu-lhe a alma e contou-lhe as calúnias e perseguições de que era alvo por parte de certos mandarins do franquismo. Escrivá, depois de escutá-lo, disse-lhe:

– Meu filho, custa, mas... tens de aprender a perdoar.

Ficou um instante calado e, como que pensando em voz alta, acrescentou:

– Eu não precisei de aprender a perdoar, porque Deus me ensinou a amar.

Não obstante, distinguia com clareza meridiana entre os ataques às pessoas e as insídias contra o Opus Dei. Quanto a estas, verdadeiros “coices contra o aguilhão”, doíam-lhe de um modo sobrenatural “pela ofensa a Deus que representam”. Havia ocasiões em que dizia: “E se não conseguem compreender, chega um momento em que morrem..., e então deixa de existir essa resistência que opunham. Deus haverá de julgar um dia as suas atuações! Nós não devemos julgar nunca”.

Essa “contradição dos bons” chegou a inflamar-se terrivelmente entre os anos de 1951 e 1952, justamente a partir da aprovação definitiva da Obra. Era mais do que uma enxurrada de falatórios e mais do que um emaranhado de calúnias; estava em andamento uma maquinação bem azeitada. Com luvas de pelica e passos sigilosos, chegaram a colocar na escrivaninha do papa Pio XII um tórrido conjunto de dossiês falsos. As acusações eram muito graves. Entre elas, uma bastante tremenda que dizia haver promiscuidade entre as mulheres e os homens do Opus Dei.

Por trás desses dossiês, estava a mão de um estrategista inteligente e hábil, que sabia bem em que delicadíssimo ponto se devia assestar o golpe para que fosse mortal: a unidade da Obra. Era esse – e esse foi sempre – o grande segredo da eficácia do Opus Dei. Uma unidade jurídica, espiritual e ascética, com uma absoluta separação de vida, de regime, de governo, de apostolados... Como duas linhas de força paralelas, concordes, que avançam juntas, embora nunca se encontrem nem se sobreponham, mas que, ao longo de toda a sua trajetória, têm em comum a mesma vocação, a mesma espiritualidade, o mesmo Fundador e o mesmo Padre.

São Josemaria e Dom Álvaro em frente à Basílica de Loreto

O único modo de acabar com a Obra teria de ser desferindo a machadada sobre a “ponte” dessa unidade. Não bastava amputar-lhe um membro qualquer ou podar um dos seus galhos: o golpe mais eficaz e decisivo era decapitá-la. Escrivá estava no ponto de mira de toda essa maquinação. Tratava-se de conseguir a expulsão do Fundador. Desaparecido este, as mulheres e os homens da Obra se desagregariam sem norte nem rumo. Seria, ao pé da letra, a passagem evangélica: Percutiam pastorem et dispergentur oves, “Matarei o pastor e as ovelhas se dispersarão”.

Como Álvaro del Portillo comentaria anos mais tarde, “era uma armadilha muito bem preparada, como um punhal posto sobre o coração. Bastava apertar um pouquinho para atravessar o coração”. Del Portillo media as palavras e recorria à metáfora do punhal empunhado certeiramente, mas ele já conhecia de primeira mão todo esse estratagema e combateu com bravura para desfazê-lo.

Escrivá sofreu na carne e na alma. Não foi coisa de um dia ou dois. A animosidade não se deixava ver, não fazia barulho, não tinha rosto. Mas estava no ambiente. Ia-se formando, estava no ambiente. Ia-se formando, como uma tempestade seca, carregada de eletricidade, implacável.

Escrivá intuía, percebia, sentia que estava acontecendo alguma coisa. Algo de grave. Mas não sabia o que era. Durante semanas e meses andou inquieto, desassossegado, como que com maus pressentimentos. Rezava, sem saber o que tinha de pedir... De vez em quando, já entrado o verão, descia ao jardim da Villa Vecchia para andar um pouco, respirar uma boa lufada de ar fresco, rezar um terço ou falar com algum dos seus filhos:

– Estou tamquam leo rugiens, como um leão que ruge!, em vigília, de guarda... Sinto-me como um cego que tem de se defender, mas só pode açoitar o vento: porque não sei o que acontece, mas alguma coisa está acontecendo...

Dizia o mesmo ao pe. Álvaro, seu filho predileto, seu confidente, seu confessor, seu “custódio”, seu saxum firme...

– Álvaro, eu não consigo saber de que se trata, mas alguma coisa está acontecendo.

E Del Portillo calava-se. Os seus olhos nublavam-se, de lágrimas mal contidas. Sentia despedaçar-se-lhe a alma, mas não podia ajudá-lo.

Como trabalhava no Vaticano, talvez tivesse conhecimento de alguns comentários malévolos; mas ignorava que se viesse maquinando alguma estranha operação que afetasse o Fundador do Opus Dei*.

Num dia de agosto desse 1951, Escrivá – que em vão batera a muitas portas sem conseguir que o recebessem nem que o escutassem –, não sabendo a quem recorrer na terra, recorre ao único remédio que tem ao seu alcance:

– Álvaro, sempre empreguei os meios sobrenaturais: a oração e a mortificação. Vou, portanto, no dia 14, por estrada, até Loreto. Quero estar lá no dia 15 e consagrar a Obra à Santíssima Virgem. Agora estamos no ferragosto, faz muito calor por essas estradas. Não importa! Assim se faz uma verdadeira mortificação.

Fachada da Basílica de Loreto

Álvaro vai com ele. Debaixo da tremenda canícula, viajam até à província de Ancona. No santuário de Loreto, o Fundador consagra o Opus Dei ao Dulcíssimo Coração de Maria, depois de celebrar ali mesmo a missa. O nervo da sua prece é conciso e direto: Iter para tutum!, “preparai-nos um caminho seguro!”

Quem reza nunca volta de mãos vazias. A resposta do céu não se fez esperar. Poucas semanas depois, já em setembro, Juan Udaondo, um dos membros do Opus Dei que residiam em Milão, informa o Padre de “algo inconcreto, mas muito inquietante”, que acaba de ouvir do cardeal Schuster, monge beneditino e arcebispo de Milão: uma pessoa importantíssima..., situada num alto posto, in alto loco, tinha-lhe contado certas coisas sobre a Obra..., “embora eu não acredite nelas, não acredito... Estou muito contente de que o Opus Dei trabalhe na minha diocese...”

Meses mais tarde, em janeiro de 1952, o cardeal Schuster, em conversa com Juan Udaondo e Juan Masiá, pergunta-lhes:

– Como está o vosso fundador?

Respondem-lhe com toda a naturalidade:

– Está muito bem...!

O prelado insiste:

– Como carrega a sua cruz? Não tem agora uma contradição especial, uma cruz muito forte?

– Bem, se realmente for assim, deve estar muito contente, porque sempre nos ensinou que, se estamos muito perto da cruz, estamos muito perto de Jesus...

– Não, não...! Dizei-lhe que tenha cuidado... Que se lembre do seu conterrâneo, São José de Calazans, e também de Santo Afonso Maria de Ligório... E que se mexa!

O aviso mencionava claramente dois santos fundadores que tinham sofrido muito às mãos de “homens da Igreja”. Um deles, o aragonês José de Calazans, fora expulso pela sua própria gente da congregação que ele mesmo fundara; injuriado com crueldade e caluniado com sanha, tivera de enfrentar um processo e um julgamento público, no tribunal da Inquisição... O napolitano Afonso Maria, advogado de profissão e fundador dos missionários redentoristas, também bebera o amargo licor da incompreensão, da crítica e da perseguição.

Udaondo escreve ao correr da pena ao Padre, transmitindo-lhe a séria e urgente advertência do cardeal Schuster. Escreve chorando. A carta – que se conserva no arquivo da Obra – deixa ver como nalgum parágrafo a tinta se desvaneceu, molhada pelas lágrimas.

Além de remeter a carta, ele mesmo viaja de Milão a Roma. A 12 de março, estão todos no oratório de via Orsini, um centro do Opus Dei, quando o Padre entra. Ajoelha-se ao seu lado. E começa a falar-lhe a meia-voz, sem deixar de olhar para o sacrário:

– Filho, quantas vezes me ouviste dizer, e bem deveras, que gostaria de não ser da Obra, para pedir imediatamente a admissão como o último... e ser o primeiro a obedecer..., obedecer a todos! Eu – o Senhor o sabe – não quis ser primeiro a obedecer..., obedecer a todos! Eu – o Senhor o sabe – não quis ser fundador de nada. Mas Deus quis assim... Meu filho, viste como querem destruir a Obra e como me atacam?... É a passagem: “Feri, matai o pastor, e as ovelhas se dispersarão”... Eu te digo aqui, diante do sacrário, que, se me expulsam da Obra, me matam...!

A sua voz quebra-se num soluço. Esconde o rosto entre as mãos.

Corcunda, corcunda... Não é possível mais dor naquele coração. É um homem em carne viva.

Imagem de Nossa Senhora de Loreto

Desde que chegou a carta de Udaondo, Escrivá começa a mexer-se. Vai dar e pedir explicações às mais altas instâncias da Santa Sé. Fala com Tedeschini, com Larraona, com Piazza, com Tardini, com Ferreto, com Baggio... Protesta com coragem:

– Se os senhores me expulsam do Opus Dei, saibam que são uns criminosos: a Obra é a minha vida, e, se me separam dela, matam-me..., assassinam-me!

Dão-lhe respostas evasivas:

– Mas, monsignore..., não há nada nem ninguém que...!

Mons. Escrivá faz algo inusitado naquele protocolo palatino da Cúria romana Mons. Escrivá faz algo inusitado naquele protocolo palatino da Cúria romana de então, antes do Vaticano II: serve-se como “intermediário” do cardeal Tedeschini, que naqueles dias, em 24 de fevereiro, acabava de ser nomeado Protetor do Opus Dei [O cargo de “Protetor” era um título honorífico que a Santa Sé conferia segundo uma antiga tradição e que hoje já não existe; atribuía um a cada instituição eclesiástica. No caso do Opus Dei, foi desempenhado, entre outros, pelos cardeais Tedeschini e Tardini. Após a nomeação pontifícia, a instituição “protegida” fazia um ato de expressa obediência ao Protetor.]. Entrega-lhe uma carta, filial e respeitosa, mas clara como água, em que, mais do que defender os direitos da Obra e os seus próprios, chama seriamente a atenção para o “grave pecado de injustiça que se cometeria” se a patranha urdida seguisse o seu curso. A carta, ainda que dirigida ao cardeal Tedeschini, como “valedor” oficial do Opus Dei diante da Santa Sé, tem um destinatário mais alto: o Papa.

O cardeal, à vista do fundo calado da trama que se vem perpetrando, compromete-se a ler pessoalmente essa carta a Pio XII, “na primeira ocasião que me seja possível”.

A oportunidade apresenta-se em 18 de março desse mesmo 1952. Pio XII reage com rapidez. O processo – avançadíssimo e prestes a abater-se sobre o Fundador do Opus Dei – detém-se em seco.

No fim de todo esse doloroso episódio, escapa de Escrivá um grito de silêncio. Escreve-o numa das páginas da sua agenda de bolso: “Sem pretendê-lo, aqueles que perseguem santificam... Mas, ai desses santificadores!”

Está perfeitamente a par de quem são os que o hostilizam. Não os menciona. Não descobre a sua identidade. Mas não pode deixar de pensar neles quando, vinte anos mais tarde, em 1972, o telefone toca de madrugada e alguém pergunta se monsignor Escrivá è morto: “São os mesmos que em 1951 queriam expulsar-me da Obra. Se o tivessem conseguido, ter-me-iam matado. E agora continuam a querer matar-me...”

Num desses dias de incerteza e de aflição, sentindo de perto o hálito dos que se confabularam contra a Obra e contra ele, sai a um dos cortili da Villa para meditar um pouco. No Arco dei Venti, apoiando-se sobre o parapeito, escreve um texto breve, mas meridianamente “informativo”, que depois fará gravar numa simples lápide de mármore:

“Quando se levantavam estas casas em serviço da Igreja, à força de uma abnegação cada dia maior, o Senhor permitia que viessem de fora duras e ocultas contradições, enquanto o Opus Dei – consagrado ao Coração Dulcíssimo de Maria, em 15 de agosto de 1951, e ao Coração Sacratíssimo de Jesus, em 26 de outubro de 1952 –, firme, compacto e seguro, se fortalecia e se dilatava. Laus Deo”.

Roma, primeira sede do Colégio Romano da Santa Cruz, 15 de Agosto de 1952.

Instalada numa das galerias que fecham o Cortile Vecchio, essa lápide esteve tapada com uma placa de metal que, como uma portinhola, girava sobre uma dobradiça. E assim permaneceu durante alguns anos, para que os rapazes que passassem por ali não tivessem conhecimento desses acontecimentos. Era um modo de lhes poupar sofrimentos desnecessários, a destempo. Naquela altura, ainda duravam as turbulências da tempestade que não chegara a desabar. Tanto é assim que alguns prelados aconselharam a Escrivá que “não desse nas vistas”, que “renunciasse a toda a atividade externa”, que “não desse nas vistas”, que “não respirasse com muita força”... Um alto membro da Cúria chegou a dizer-lhe: “Há ocasiões em que, para que não nos matem, é conveniente fazermo-nos de mortos”.

Violentando o seu caráter extrovertido e sociável e, sobretudo, a sua impaciente ânsia de almas que o impelia a procurar o contacto com as pessoas, Escrivá recluiu-se voluntariamente em Villa Tevere. Seriam anos de um encerramento ativíssimo: dedicado a formar os seus, a escrever homilias e cartas doutrinais, e a impulsionar com vigor o apostolado em diversos países. Não foi visto em Roma, mas percorreu a Europa de ponta a ponta, em cansativas viagens de carro.

Sentiu, sim, a mordida da solidão romana... Ele, que um dia dissera a Francesco Angelicchio: “Sou mais romano do que tu!”, agora chegava a sentir-se “estrangeiro na minha Roma!”

São Josemaria em Villa Tevere (Roma), 31 de maio de 1949

Por aquela época, faz certa vez a sua oração com o Salmo 68: “Mais numerosos que os cabelos da minha cabeça são os que me detestam sem razão... Por Vós, ó Deus, sofri afrontas, e o meu rosto cobriu-se de confusão... Cheguei a ser um estranho para os meus irmãos, e um forasteiro para os filhos de minha mãe...”

Corcunda, corcunda... As lágrimas, virilmente reprimidas, queimam-no como limão nos olhos. Pega num lápis e rabisca umas notas, transbordantes de pena amarga. E não o faz para desabafar, mas para que algum dia outros aprendam – sofrendo menos – com o mesmo que ele aprendeu:

“Intrigas, interpretações miseráveis – talhadas à medida do coração vil que interpreta –, sussurros covardes... É uma cena infelizmente repetida nos diversos ambientes: nem trabalham nem deixam trabalhar.

“– Medita devagar aqueles versos do salmo: «Meu Deus, cheguei a ser um estranho para os meus irmãos, e um forasteiro para os filhos de minha mãe. Porque o zelo da tua casa me devorou, e os opróbrios dos que te ultrajavam caíram sobre mim»... E continua a trabalhar” ( Forja, n.797).

Passados vários anos, num dia frio de novembro de 1959, em tertúlia com os alunos do Colégio Romano, um deles, para provocar o relato intimista, pede-lhe:

– Padre, conte-nos o que acontecia em 1951 e 1952, quando queriam dividir a Obra em dois ramos e expulsar o senhor... Quem estava por trás daquela perseguição?

Escrivá, que não quer ter segredos para os seus filhos, mas que também não gosta de “estragar a festa” de ninguém, apontando com o queixo para um ponto afastado, fora da sala, alude àquela lápide, que ficará para sempre como testemunha de pedra de uns anos de dor:

– Olha, filho, aí no Cortile Vecchio há uma lápide, que podeis ler, e que está muito clara. Está em castelhano puro. Essa, escrevi-a eu, sentado em cima de umas pedras, quando estavam construindo aquilo... Com o coração cheio de amargura, mas feliz, muito feliz! Nunca – nem sequer então – perdi a alegria. Detivemos aquilo o pe. Álvaro e eu juntos. Mas tu me dizes: “Padre, conte-nos... quem está por trás”, e eu tenho que dizer-vos que há muitas coisas que sabereis no céu. Na terra, não. É melhor que não...


*NOTA: D. Javier Echevarría declarou à autora: “D. Álvaro não sabia nada do que se vinha tramando contra a Obra. Perguntei-lhe se se calara nessa ocasião por «segredo de ofício»; mas disse-me que não, que, se tivesse sabido alguma coisa, quando se urdia a maquinação, teria intervindo por conta própria para procurar desativar essa operação e defender a Obra e o nosso Padre”. Conversa em Roma, 9-IV-1994.

Extraído do livro "O Homem de Villa Tevere", Pilar Urbano, páginas 116-124