A Ascensão do Senhor aos céus

Homilia de São Josemaria sobre a festa da Ascensão do Senhor, publicada no livro "É Cristo que passa".

Uma vez mais, a liturgia põe diante dos nossos olhos o último dos mistérios da vida de Jesus Cristo entre os homens: a sua Ascensão aos céus. Desde o seu Nascimento em Belém, muitas coisas aconteceram: encontramo-lo no berço, adorado por pastores e por reis; contemplamo-lo nos longos anos de trabalho silencioso, em Nazaré; acompanhamo-lo pelas terras da Palestina, pregando aos homens o reino de Deus e fazendo o bem a todos. E, mais tarde, nos dias da sua Paixão, sofremos ao presenciar como o acusavam, com que fúria o maltratavam, com quanto ódio o crucificavam.

À dor seguiu-se a alegria luminosa da Ressurreição. Que fundamento tão claro e tão firme para a nossa fé! Não deveríamos continuar duvidando. Mas talvez ainda sejamos fracos, como os Apóstolos, e perguntemos a Cristo neste dia da Ascensão: É agora que vais restaurar o reino de Israel? ; é agora que vão desaparecer definitivamente todas as nossas perplexidades e todas as nossas misérias?

O Senhor responde-nos subindo aos céus. Tal como os Apóstolos, ficamos meio admirados, meio tristes ao ver que nos deixa. Na realidade, não é fácil acostumarmo-nos à ausência física de Jesus. Comove-me recordar que Jesus, num gesto magnífico de amor, foi-se embora e ficou; foi para o céu e entrega-se a nós como alimento na Hóstia Santa. Sentimos, no entanto, a falta da sua palavra humana, da sua forma de atuar, de olhar, de sorrir, de fazer o bem. Gostaríamos de voltar a vê-lo de perto, quando se senta à beira do poço, cansado da dura caminhada , quando chora por Lázaro , quando se recolhe em prolongada oração , quando se compadece da multidão.

Sempre me pareceu lógico - e me cumulou de alegria - que a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo subisse à glória do Pai. Mas penso também que esta tristeza, própria do dia da Ascensão, é uma manifestação do amor que sentimos por Jesus, Senhor Nosso. Sendo perfeito Deus, Ele se fez homem, perfeito homem, carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. E separa-se de nós, indo para o céu. Como não havíamos de notar a sua falta?

Se soubermos contemplar o mistério de Cristo, se nos esforçarmos por vê-lo com os olhos limpos, perceberemos que é possível, mesmo agora, aproximar-se intimamente de Jesus, em corpo e alma. Cristo marcou-nos claramente o caminho: pelo Pão e pela Palavra; alimentando-nos com a Eucaristia e conhecendo e praticando o que nos veio ensinar, ao mesmo tempo que conversamos com Ele na oração. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Aquele que retém os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele.

Não são simples promessas. São o âmago, a realidade de uma vida autêntica: a vida da graça, que nos impele a entrar numa relação pessoal e direta com Deus. Se observardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como eu observei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu amor. Esta afirmação de Jesus, no discurso da Última Ceia, é o melhor preâmbulo para o dia da Ascensão. Cristo sabia que era necessário ir-se embora porque, de um modo misterioso que não acertamos a compreender, depois da Ascensão é que chegaria - numa nova efusão de Amor divino - a terceira Pessoa da Trindade Santíssima: Digo-vos a verdade: convém que eu vá. Se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo enviarei.
Foi-se e envia-nos o Espírito Santo, que governa e santifica a nossa alma. Ao atuar em nós, o Paráclito confirma o que Cristo nos anunciava: que somos filhos de Deus e que não recebemos o espírito de escravidão, para continuarmos agindo por temor, mas o espírito de adoção de filhos, em virtude do qual clamamos: “Abba”, Pai!

Vemos? É a ação trinitária nas nossas almas. Todo o cristão tem acesso a essa inabitação de Deus no mais íntimo do seu ser, desde que corresponda à graça que o leva a unir-se a Cristo no Pão e na Palavra, na Sagrada Hóstia e na oração. A Igreja submete todos os dias à nossa consideração a realidade do Pão vivo, e consagra-lhe duas das grandes festas do ano litúrgico: a da Quinta-Feira Santa e a do Corpus Christi. Hoje, vamos deter-nos na forma de conseguir intimidade com Jesus escutando atentamente a sua Palavra.

Uma oração ao Deus da minha vida. Se Deus é vida para nós, nada tem de estranho que a nossa existência de cristãos deva estar entretecida de oração. Mas não pensemos que a oração é um ato que se realiza e depois se abandona. O justo compraz-se na lei de Iavé e tende a acomodar-se a essa lei durante o dia e durante a noite. Pela manhã penso em Ti ; e, de tarde, a Ti se eleva minha oração como o incenso. O dia inteiro pode ser tempo de oração: da noite até à manhã e da manhã até à noite. Mais ainda: como nos recorda a Escritura Santa, o próprio sono deve ser oração.

Lembremo-nos do que os Evangelhos nos contam de Jesus. Às vezes, passava a noite inteira ocupado num colóquio íntimo com seu Pai. Como cativou os primeiros discípulos a figura de Cristo em oração! Depois de contemplarem esta atitude constante do Mestre, pedem-lhe: Domine, doce nos orare , Senhor, ensina-nos a orar assim.

São Paulo - oratione instantes , contínuos na oração, escreve - difunde por toda a parte o exemplo vivo de Cristo. E São Lucas, numa pincelada, retrata a maneira de agir dos primeiros fiéis: Animados de um mesmo espírito, perseveravam juntos na oração.

A têmpera do bom cristão adquire-se, mediante a graça, na forja da oração. E, por ser vida, este alimento que é a oração não segue uma trilha única. O coração saberá desafogar-se habitualmente, por meio de palavras, nessas orações vocais ensinadas pelo próprio Deus - o Pai Nosso - ou por seus anjos - a Ave Maria. Outras vezes, utilizaremos orações acrisoladas pelo tempo, nas quais se verteu a piedade de milhões de irmãos na fé: as da liturgia - lex orandi -, ou as que nasceram do ardor de um coração enamorado, como tantas antífonas marianas: Sub tuum praesidium..., Memorare..., Salve Regina...
Em outras ocasiões, serão suficientes duas ou três expressões lançadas ao Senhor como setas, iaculata: jaculatórias, que aprendemos na leitura atenta da história de Cristo: Domine, si vis potes me mundare - Senhor, se quiseres, podes curar-me; Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te - Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que eu te amo; Credo, Domine, sed adiuva incredulitatem meam - Creio, Senhor, mas ajuda a minha incredulidade, fortalece a minha fé; Domine, non sum dignus - Senhor, não sou digno!; Dominus meus et Deus meus - Meu Senhor e meu Deus!... Ou outras frases, breves e afetuosas, que brotam do fervor íntimo da alma e correspondem a circunstancias particulares.

A vida de oração deve apoiar-se, além disso, em alguns minutos diários dedicados exclusivamente ao trato com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de palavras, junto do Sacrário sempre que possível, para agradecer ao Senhor por essa espera - como está só! - de vinte séculos. A oração mental é esse diálogo com Deus, de coração a coração, em que intervém a alma toda: a inteligência e a imaginação, a memória e a vontade. É uma meditação que contribui para dar valor sobrenatural à nossa pobre vida humana, à nossa vida diária e corrente.

Graças a esses momentos de meditação, às orações vocais, às jaculatórias, saberemos converter o nosso dia num contínuo louvor a Deus, sempre com naturalidade e sem espetáculo. Assim, à semelhança dos enamorados, que não tiram nunca os sentidos da pessoa que amam, manter-nos-emos sempre na sua presença; e todas as nossas ações - mesmo as mais pequenas e insignificantes - transbordarão de eficácia espiritual.

Por isso, quando um cristão envereda por este caminho de intimidade ininterrupta com o Senhor - e é um caminho para todos, não uma senda para privilegiados -, a vida interior cresce, segura e firme; e o homem consolida-se nessa luta, simultaneamente amável e exigente, por realizar até o fundo a vontade de Deus.

A partir da vida de oração, podemos entender esse outro tema que a festa de hoje nos propõe: o apostolado, a realização dos ensinamentos de Jesus transmitidos aos Apóstolos pouco antes de subir aos céus: Vós me servireis de testemunhas em Jerusalém e em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo.

Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa expande-se em ímpetos de ação apostólica: Ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo em minha meditação. Que fogo é este, senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo vim trazer à terra e que hei de querer senão que arda?. Fogo de apostolado, que se robustece na oração: não há melhor meio do que este para desenvolver, por toda a redondeza do mundo, essa batalha pacífica em que cada cristão é chamado a participar - cumprir o que resta por padecer a Cristo.

Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas, pela oração e pela Eucaristia, o cristão pode ter com Ele a mesma intimidade que tinham os primeiros Doze, inflamar-se no seu zelo apostólico, para com Ele realizar um serviço de co-redenção, que é semear a paz e a alegria. Servir, portanto, porque o apostolado não é outra coisa. Se contarmos exclusivamente com as nossas próprias forças, nada obteremos no terreno sobrenatural; se formos instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: Tudo posso nAquele que me conforta. Por sua infinita bondade, Deus resolveu servir-se destes instrumentos ineptos. Daí que o apóstolo não tenha outro fim senão deixar agir o Senhor, mostrar-se inteiramente disponível, para que Deus realize - através das suas criaturas, através da alma escolhida - a sua obra salvadora.

Apóstolo é o cristão que se sente enxertado em Cristo, identificado com Cristo, pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pelo Crisma; chamado a servir a Deus com a sua ação no mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que lhe confere uma certa participação no sacerdócio de Cristo - embora essencialmente diferente daquela que constitui o sacerdócio ministerial - e o torna capaz de participar no culto da Igreja e de ajudar os homens a caminhar para Deus, mediante o testemunho da palavra e do exemplo, mediante a oração e a expiação.

Cada um de nós tem que ser ipse Christus, o próprio Cristo. Ele é o único Medianeiro entre Deus e os homens ; e nós unimo-nos a Ele para com Ele oferecermos todas as coisas ao Pai. Nossa vocação de filhos de Deus, no meio do mundo, exige não apenas que procuremos atingir a nossa santidade pessoal, mas que avancemos pelos caminhos da terra, para convertê-los em atalhos que, através dos obstáculos, levem as almas ao Senhor; que tomemos parte, como cidadãos comuns, em todas as atividades temporais, para sermos levedura que informe a massa inteira.

Cristo subiu aos céus, mas transmitiu a tudo o que é humano e honesto a possibilidade concreta de ser redimido. São Gregório Magno aborda este grande tema cristão com palavras incisivas: Partia assim Jesus para o lugar de onde era e regressava do lugar em que continuava morando. Com efeito, no momento em que subia ao céu, unia com a sua divindade o céu e a terra. Na festa de hoje, devemos destacar solenemente o fato de ter sido suprimido o decreto que nos condenava, o juízo que nos submetia à corrupção. A natureza a que se dirigiam aquelas palavras: “Tu és pó e em pó te hás de tornar” (Gen. III, 19) -, essa mesma natureza subiu hoje ao céu com Cristo.

Não me cansarei de repetir, portanto, que o mundo é santificável, e que compete especialmente aos cristãos levar a cabo essa tarefa: purificando-o das ocasiões de pecado com que os homens o desfeiam e oferecendo-o ao Senhor como hóstia espiritual, apresentada e dignificada mediante a graça de Deus e o nosso esforço. Em rigor, não se pode dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a terra com a sua presença e com o trabalho de suas mãos. A grande missão que recebemos no Batismo é a co-redenção. A caridade de Cristo nos compele a tomar sobre os ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as almas.

Tenhamos presente que a Redenção, que se consumou quando Jesus morreu na vergonha e na glória da Cruz - escândalo para os judeus, loucura para os gentios -, continuará a realizar-se por vontade de Deus até que chegue a hora do Senhor. Não são coisas compatíveis viver segundo o Coração de Jesus Cristo e não nos sentirmos enviados, como Ele, peccatores salvos facere , a salvar todos os pecadores, convencidos de que nós mesmos necessitamos de confiar cada vez mais na misericórdia de Deus. Daí o desejo veemente de nos considerarmos co-redentores com Cristo, de salvar com Ele todas as almas, porque somos, queremos ser ipse Christus, o próprio Jesus Cristo; e Ele deu-se a si mesmo em resgate por todos.

Temos à nossa frente uma grande tarefa. Não é possível permanecermos passivos, porque o Senhor nos declarou expressamente: Negociai até que eu volte. Enquanto esperamos o regresso do Senhor, que voltará para tomar posse plena do seu Reino, não podemos estar de braços cruzados. A propagação do Reino de Deus não é apenas tarefa oficial dos membros da Igreja, que representam Cristo por terem recebido dEle os poderes sagrados. Vos autem estis corpus Christi : vós também sois corpo de Cristo - frisa o Apóstolo -, com mandato específico de negociar até o fim.

Ainda há tanto que fazer! Mas será que em vinte séculos não se fez nada? Em vinte séculos trabalhou-se muito. Não me parece nem objetiva nem honesta a persistência com que alguns se empenham em menosprezar a tarefa dos que nos precederam. Em vinte séculos realizou-se um grande trabalho e, com freqüência, realizou-se muito bem. Em certas épocas, houve desacertos, recuos, como também hoje há retrocessos, medo, timidez, ao mesmo tempo que não faltam atitudes de valentia e generosidade. Mas a família humana renova-se constantemente; em cada geração é necessário continuar com o empenho de ajudar o homem a descobrir a grandeza da sua vocação de filho de Deus, e inculcar-lhe o mandamento do amor ao Criador e ao próximo.

Cristo ensinou-nos definitivamente o caminho desse amor a Deus: o apostolado é o amor a Deus que transborda e se dá aos outros. A vida interior exige crescimento na união com Cristo, pelo Pão e pela Palavra. E a preocupação de apostolado é a manifestação exata, adequada e necessária da vida interior. Quando se saboreia o amor de Deus, sente-se o peso das almas. Não se pode dissociar a vida interior do apostolado, como não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de Redentor. O Verbo quis encarnar-se para salvar os homens, para os fazer uma só coisa com Ele. Esta é a razão da sua vinda ao mundo: Por nós, homens, e por nossa salvação desceu dos céus, rezamos no Credo.

Para o cristão, o apostolado é algo congênito: não tem nada de artificial, de justaposto, não é externo à sua atividade diária, à sua ocupação profissional. Tenho-o dito sem cessar, desde que o Senhor dispôs que surgisse o Opus Dei. Trata-se de santificar o trabalho ordinário, de santificar-se nessa tarefa e de santificar os outros mediante o exercício da respectiva profissão, permanecendo cada um no seu estado de vida.

O apostolado é como a respiração do cristão; não pode um filho de Deus viver sem esse palpitar espiritual. Recorda-nos a festa de hoje que o zelo pelas almas é um mandamento amoroso do Senhor: ao subir para a sua glória, Ele nos envia pelo orbe inteiro como suas testemunhas. Grande é a nossa responsabilidade, porque ser testemunha de Cristo implica, antes de mais nada, procurar comportar-se segundo a sua doutrina, lutar para que a nossa conduta recorde Jesus e evoque a sua figura amabilíssima. Temos que conduzir-nos de tal maneira que, ao ver-nos, os outros possam dizer: este é cristão porque não odeia, porque sabe compreender, por que não é fanático, porque está acima dos instintos, porque é sacrificado, porque manifesta sentimentos de paz, porque ama.

Com a doutrina de Cristo, não com as minhas idéias, acabo de traçar um caminho ideal para o cristão. Temos de convir em que é alto, sublime, atrativo. Mas talvez nos perguntemos: será possível viver assim na sociedade de hoje?

É verdade que o Senhor nos chamou em momentos em que se fala muito de paz, e não há paz: nem nas almas, nem nas instituições, nem na vida social, nem entre os povos. Fala-se continuamente de igualdade e de democracia, e proliferam as castas: fechadas, impenetráveis. Chamou-nos num tempo em que se clama por compreensão; e a compreensão brilha pela sua ausência, mesmo entre pessoas que agem de boa fé e querem praticar a caridade, porque, não o esqueçamos, a caridade, mais do que em dar, consiste em compreender.
Atravessamos uma época em que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de admitir as razões dos outros - se protegem de antemão tachando de violentas e agressivas as suas vítimas. Chamou-nos, enfim, quando se ouve tagarelar muito sobre unidade, e talvez seja difícil conceber maior desunião, não já entre os homens em geral, mas entre os próprios católicos.

Nunca faço considerações políticas, porque não é esse o meu ofício. Para descrever sacerdotalmente a situação do mundo atual, basta-me pensar de novo numa parábola do Senhor: a do trigo e do joio. O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo; mas, enquanto os trabalhadores dormiam, veio certo inimigo seu, espalhou joio no meio do trigo, e foi-se. Está tudo bem claro: o campo é fértil e a semente é boa; o Senhor do campo lançou a mãos cheias a semente no momento propício e com arte consumada; além disso, organizou uma vigilância para proteger a semeadura recente. Se depois apareceu o joio, foi porque não houve correspondência, porque os homens - os cristãos especialmente - adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.

Quando os servidores irresponsáveis perguntam ao Senhor por que cresceu o joio no seu campo, a explicação salta aos olhos: Inimicus homo hoc fecit , foi o inimigo! Nós, os cristãos, que devíamos estar vigilantes para que as coisas boas postas pelo Criador no mundo se desenvolvessem a serviço da verdade e do bem, nós adormecemos - triste preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que o servem se moviam sem descanso. Bem vemos como cresceu o joio: que semeadura tão abundante e por toda a parte!

Não tenho vocação para profeta de desgraças. Não desejo com as minhas palavras apresentar um panorama desolador, sem esperança. Não pretendo queixar-me destes tempos em que vivemos por providência do Senhor. Amamos esta nossa época, porque é o âmbito em que temos de alcançar a nossa santificação pessoal. Não admitimos nostalgias ingênuas e estéreis: o mundo nunca esteve melhor. Desde sempre, desde o nascimento da Igreja, quando ainda se escutava a pregação dos primeiros Doze, surgiam já com violência as perseguições, começavam as heresias, propalava-se a mentira e desencadeava-se o ódio.

Mas também não é lógico negar que o mal parece ter prosperado. Dentro de todo esse campo de Deus, que é a terra, que é herança de Cristo, irrompeu o joio: e não apenas joio, mas abundância de joio! Não nos podemos deixar enganar pelo mito do progresso perene e irreversível. O progresso retamente ordenado é bom e Deus o quer. Mas hoje tem-se mais em conta esse outro falso progresso, que cega os olhos a tanta gente, porque com freqüência não se percebe que a humanidade, em alguns de seus passos, volta para trás e perde o que antes havia conquistado.

O Senhor - repito - deu-nos o mundo por herança. E é necessário termos a alma e a inteligência despertas; temos que ser realistas, sem derrotismos. Só uma consciência cauterizada, só a insensibilidade produzida pela rotina, só o aturdimento frívolo podem permitir que se contemple o mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus, o prejuízo, às vezes irreparável, que se causa às almas. Temos que ser otimistas, mas com um otimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não perde batalhas -, com um otimismo que não proceda da satisfação humana, de uma complacência néscia e presunçosa.

Que fazer? Disse que não procurava descrever crises sociais ou políticas, derrocadas ou mazelas culturais. Sob a perspectiva da fé cristã, venho-me referindo ao mal no sentido preciso de ofensa a Deus. O apostolado cristão não é um programa político nem uma alternativa cultural: consiste na difusão do bem, no contágio do desejo de amar, numa semeadura concreta de paz e de alegria. E desse apostolado derivarão sem dúvida benefícios espirituais para todos: mais justiça, mais compreensão, mais respeito do homem pelo homem.

Há muitas almas à nossa volta; e não temos o direito de ser obstáculo ao seu bem eterno. Estamos obrigados a ser plenamente cristãos, a ser santos, a não defraudar Deus nem todos aqueles que esperam do cristão o exemplo e a doutrina.

O nosso apostolado deve basear-se na compreensão. Insisto novamente: a caridade, mais do que em dar, consiste em compreender. Não escondo que aprendi na minha própria carne quanto custa não ser compreendido. Sempre me esforcei por fazer-me compreender, mas há quem se empenhe em não me compreender: eis outra razão, prática e viva, para que deseje compreender a todos. Mas não há de ser um impulso circunstancial o que nos obrigue a ter esse coração amplo, universal, católico. O espírito de compreensão é expressão da caridade cristã do bom filho de Deus: porque o Senhor quer que estejamos presentes em todos os caminhos retos da terra, para espalhar a semente da fraternidade - não a do joio -, da desculpa, do perdão, da caridade, da paz. Nunca nos sintamos inimigos de ninguém.

O cristão tem que se mostrar sempre disposto a conviver com todos, a dar a todos - com o seu trato - a possibilidade de se aproximarem de Cristo Jesus. Há de sacrificar-se de bom grado por todos, sem estabelecer distinções, sem dividir as almas em compartimentos estanques, sem lhes aplicar rótulos, como se fossem mercadorias ou insetos dissecados. Não pode o cristão separar-se dos outros, porque então a sua vida seria miserável e egoísta: deve fazer-se tudo para todos, para salvar a todos.

Quem dera que vivêssemos assim, que soubéssemos impregnar a nossa conduta desta semeadura de generosidade, deste desejo de convivência, de paz! Desse modo, fomentar-se-ia a legítima independência pessoal dos homens e cada um assumiria a sua responsabilidade pelas tarefas que lhe incumbem na ordem temporal. O cristão saberia defender acima de tudo a liberdade alheia, para poder depois defender a sua própria. Teria a caridade de aceitar os outros como são - porque não há ninguém que não arraste consigo uma cauda de misérias e não cometa erros -, ajudando-os com a graça de Deus e com delicadeza humana a vencer o mal, a arrancar o joio, a fim de que todos possamos mutuamente amparar-nos e viver com dignidade a nossa condição de homens e de cristãos.

A tarefa apostólica, que Cristo confiou a todos os seus discípulos, produz, portanto, resultados concretos na esfera social. Não é admissível pensar que, para sermos cristãos, seja preciso voltarmos as costas ao mundo, sermos uns derrotistas da natureza humana. Tudo, até o mais ínfimo dos acontecimentos honestos, encerra um sentido humano e divino. Cristo, perfeito homem, não veio destruir o que é humano, mas enobrecê-lo, assumindo a nossa natureza humana, à exceção do pecado: veio compartilhar todas as aspirações do homem, exceto a triste aventura do mal.

O cristão deve estar sempre disposto a santificar a sociedade a partir de dentro, permanecendo plenamente no mundo, mas sem ser do mundo naquilo que o mundo encerra - não por ser característica real, mas por defeito voluntário, pelo pecado - de negação de Deus, de oposição à sua amável vontade salvífica.

A festa da Ascensão do Senhor sugere-nos também outra realidade: esse Cristo que nos anima a empreender esta tarefa no mundo espera-nos no céu. Por outras palavras: a vida na terra, que nós amamos, não é a realidade definitiva; pois não temos aqui cidade permanente, mas andamos em busca da futura cidade imutável.

Cuidemos, porém, de não interpretar a Palavra de Deus dentro dos limites de horizontes estreitos. O Senhor não nos incita a ser infelizes enquanto caminhamos, esperando a consolação apenas no mais além. Deus nos quer felizes também aqui, se bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa outra felicidade, que só Ele pode consumar plenamente.

Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas almas, o amor ao próximo como fruto saboroso do amor a Deus, representam já uma antecipação do céu, uma incoação destinada a crescer de dia para dia. Nós, os cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de vida, simples e forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações.

Cristo espera-nos. Vivemos já como cidadãos do céu , sendo plenamente cidadãos da terra, no meio das dificuldades, das injustiças, das incompreensões, mas também no meio da alegria e da serenidade que nos dá saber-nos filhos amados de Deus. Perseveremos no serviço do nosso Deus, e veremos como aumenta em número e em santidade este exército cristão de paz, este povo de co-redenção. Sejamos almas contemplativas, absorvidas num diálogo constante com Deus, procurando a intimidade com o Senhor a toda a hora: desde o primeiro pensamento do dia até o último da noite; pondo continuamente o nosso coração em Jesus Cristo, Nosso Senhor; achegando-nos a Ele por Nossa Mãe, Santa Maria, e por Ele, ao Pai e ao Espírito Santo.

E se, apesar de tudo, a subida de Jesus aos céus nos deixar na alma um travo de tristeza, acudamos à sua Mãe, como fizeram os Apóstolos: Tornaram então a Jerusalém... e oravam unanimemente... com Maria, a Mãe de Jesus.

"É Cristo que Passa" - capítulo 12